segunda-feira, 7 de maio de 2007

O vampiro, Deborah

A tempestade anunciou o vampiro. Ele ficou parado na porta, molhado até a alma, compondo com o batente um quadro surrealista sobre um fundo escuro e chuvoso. Deborah interrompeu a respiração no terceiro parágrafo de Zaratustra, sem coragem de olhar para ele, com medo de resistir mais do que devia.

Quando finalmente voltou a respirar e o olhou, muito tempo depois, não se assustou, nem lhe disse que entrasse.

O vampiro estava recortado contra nuvens pesadas que desabavam violentamente sobre o jardim, esmagando as violetas que ela plantara no último domingo (melhor dia para plantar violetas), e contra um vento forte que deslocava as cortinas e desequilibrava uma reprodução do auto-retrato de Van Gogh de cima da lareira. Ele ficou ainda minutos que não terminavam impassível na porta, dominando a situação com sua figura esguia e altiva, olhos profundos. Essa não era como das outras noites, nem era como das outras vítimas. Estava especialmente denso, investido em sua melhor aura de fascínio e horror. Queria impressionar. Não saíra de casa sem rever todos os detalhes: os vincos das calças, os sapatos alemães, as meias Lupo, as abotoaduras de ouro. Previra tudo, até o tempo gasto escovando os dentes.

Por fim, o vampiro se decidiu a entrar e falou alguma coisa em romeno antes de trancar a porta. Deborah: respondeu em voz baixa, consentindo. Ele: aproximou-se e tocou-lhe o seio esquerdo, como dono. Ela: retirou a mão dele de sobre o seio e perguntou:

— Por que demorou tanto a vir?

— Não me demorei — foi a resposta. — É que você me esperou todas as noites ao seu lado e o que vai pelo coração de quem espera é muito longo, tortuoso. Sente cansaço, aquele que aguarda o instante da posse, formula hipóteses as mais várias e descabidas. “Eis, então, que desistiu”, concluiu apressadamente. “Aqui jaz alguém imediato”, dirá sua lápide.

[Parece poesia? É poesia.]

— Trago ainda no corpo as marcas doloridas de não ter desistido eu — disse Deborah. — Foram horas muito longas, até perceber os seus passos no jardim.

— E era apenas o tempo suficiente, que eu também esperei, para você se compor e se colar, mosaica, até estar completa e preparada para mim. Agora que está pronta, eis-me aqui. Venho buscar o que é meu.

Ela sabia que ele estava certo. Durante toda a sua vida estivera pronta para este instante de sedução.

Completou o cenário: Mozart, Liebfraumilch, que a hora é alegre, embora cada qual deva cumprir um destino — e isso não é mera fatalidade.

Uma borboleta atravessou o set e fez um pouso azul na borda de um copo de cristal. Ruído de chuva na vidraça e penumbra, interrompida apenas, vez ou outra, pela alvura mágica da pele, o roçar da seda na perna — ela se veste para o amor.

O vampiro, esse fique onde está, não entre ainda, que aqui só cabe a forma bela e sensual da amada. Não invada, o amante, esta fantasia, não interrompa este instante irrepetível. Ela não quer que nada se precipite. Investe-se de sonhos. Vai ser preciso descobri-la mansamente, desfolhá-la, roubar-lhe significado após significado, encontrá-la sob a metáfora, até que ela se entregue, quando quiser, inteira e límpida. É muita emoção para uma só paciência, é o que ela é.

Ele ouve cada coisa em seu silêncio. [O coração inaudível dos objetos bate seu ritmo múltiplo, persistente.] Está ansioso. Bastaria que algo se movesse e o mundo deixaria sua rota, mas nada se move, exceto o sangue dele (insuficiente para alterar o caminho do planeta), que circula mais rápido e acaba por se perder de suas vias naturais, fugindo das veias e artérias, acumulando-se desordenadamente em suas pernas, de forma que, quando Deborah o chama, ele está preso ao chão, sem conseguir andar, e mais pálido que nunca. Agora ela está difusa, menos mulher que fantasma. Pronuncia o nome dele com som serpente. Quase caminha, mais paira, acima da gravidade do momento e da lei.

Ela está frágil, ali, ao alcance do vampiro, dos dentes dele, sedentos, a seda branca alcançando seu braço, feito pele que, desgarrada, voltasse ao dono original.

Ele: vai dizer algo em magiar. Mas: ela o impede, decidida. Passam um tempo incalculável admirando-se mutuamente, um, pesado e imortal; outra, provocante e alada, deixando-se sugerir. Não faltará ânsia para que, dentro em breve, o beijo. Não faltará silêncio para que, entretantos, o mistério.

— Podia ter vindo antes — ela falou semidistraída, enquando ajeitava-lhe uma mecha de cabelos que teimava em cair sobre o olho esquerdo.

Ele se desvencilhou da mão dela:

— Você ainda não estava preparada. Mas eu não vir não significa que eu não estivesse aqui.

— Terá sido sua então a boca que senti sobre os seios e suas as mãos que me desnudaram e seus os caninos que me romperam a jugular, nas noites em que eu me julgava só?

— Sim, era eu, o que você imaginou para suprir minha ausência ignorada, sem saber que, em mim, doía-me tanto minha própria ausência que precisei te resgatar em minha vida insípida e sem sentido.

— Ah, e quanta doçura havia em suas mãos e lábios em meus sonhos! Trouxe-a com você?

Enquanto falava, uma lágrima escapou ao seu controle e, após percorrer um abismo vertical, estilhaçou-se no chão, em mil diamantes minúsculos. Ele faz um segundo movimento, andante molto. Sua mão mergulha nos cabelos dela, vaga pelo ombro, ficará eterna nesse ir e vir, fluida, na maciez da pele.

Quando voltou a falar, a voz era calma e triste:

— Trago comigo é uma dor inexprimível e sem remédio, o ter que vagar eternamente, sem consolo, por entre seres que apenas me aceitam, não me conhecem. Se fui doce com você, é porque te inventei para poder suportar esse vazio inesgotável que tenho em mim através dos séculos, e quero agora acreditar na sua real existência. Você não é mais um sonho. Não sou mais um sonho. Estou aqui. Ainda respiro, fumo, bebo, durmo... não sei bem pra quê, mas não importa. Sei que te amo, criatura minha, da mais sincera maneira de amar. Só que a mágoa mais profunda em mim persiste, inacessível a pais, irmãos, ou companheiras de leito e vida breve. A lívida face do absurdo roça a minha, com vagar. Que há de ser feito dessa dor em meio ao nada?

— Não há o que possa, amado, nos redimir desse imenso destino de estarmos vivos sem saber por quê. Por isso te acolho em mim e te protejo. Que sejas sempre essa mistura de humano e divino que és, meu homodeo de negros cabelos e voz de profundeza. E que possas me aguardar sempre em alguma região de ti, através de céus escuros e solidão e lágrimas e ranger de dentes.

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Tarde como nunca. As coisas sempre. Lábio a lábio, eles se recompõem mulher e homem, indistintos. Em alguma parte, contra um cenário de García Lorca, alguém lê a Espanha. O acaso da luz que vem da lareira detona veias vermelhas na casa e cada poro das paredes, enfim, verte seu sangue contido, ex. De noites como assim não fogem gritos aos assassinados, nem se encomendam preces aos defuntos antigos, nem apodrecem frutos recém-colhidos, nem flui o trânsito, nem sequer a vida segue seu curso, nem. Noite sem jamais, o que resta para acontecer é o silêncio.