terça-feira, 27 de março de 2007

Os mortos estão no living

Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,
eu no centro.
Nenhum tinha rosto. [...]
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram os rostos iluminados.
Carlos Drummond de Andrade, “Comunhão”
I

Havia sapos coaxando na memória, onde os mortos passeavam, impunes, suas sombras.

Não conseguia precisar exatamente quando começara a crescer, por isso o período anterior ao seu crescimento estivera recostado por tanto tempo entre o umbral da vagina materna, as roupas de boneca, a primeira comunhão, a primeira menstruação. Agora era adulta e, adulta, era um feto consumido. Foi num espaço vago dessas abstrações que, lentamente, o coaxar dos sapos se instalou, sem que ela pudesse evitar, e um morto pôde consolidar-se em suas lembranças.

De início, assustou-se e ficou tão lívida quanto lhe era possível comprimir o sangue para os pés. Mas, em seguida, reconheceu o cadáver sorridentes do pai, depois, o da mãe, do avô, dos tios, tias, primos, o irmão assassinado, e, tranqüilizada, distraiu-se vendo, com saudades, o filme dos mortos de toda a sua genealogia.

E eram tantos os antepassados desaparecidos e tanta a emoção singular de revê-los com tamanha nitidez que ela quase não ia percebendo uma personagem de que não se lembrava, embora tivesse algo de vagamente familiar. Era uma menina, cuja imagem já começava a se dissipar no fotograma desbotado pelos anos. Por muito, porém, que a observasse, não a encontrava entre suas recordações, por mais e mais que as vasculhasse.

Parou a projeção do filme, sentindo-se confusa. Temeu adultérios, coisas escondidas, segredos perdidos resvalados, de repente, sem querer, do escuro em que jaziam para a luz. E aquela garotinha ali, nem um sorriso (sorrir era sempre uma pista), estagnada, fitando-a, pouco à vontade, de um passado sem vestígios.

Intrigada, ela ficou ainda alguns instantes coagulada na atmosfera da sala, tentando dar com o porquê da visita súbita e silenciosa de toda a sua linhagem, desde o fundador da estirpe até aquela criança enigmática, mas não teve oportunidade de pensar em mais nada, os filhos já voltavam da escola, precisava preparar-lhes banho-lanche, como fora esquecer-se disso?


II

Portando seu melhor sorriso, antes que os filhos tocassem a campainha, abriu a porta, esperando uma tarde como tantas, e ficou boquiaberta: eles não a beijaram e, pior, passaram através dela, como nos truques de atravessar paredes dos mágicos dos circos, sem vê-la, indo procurá-la escada acima, seguidos de um séquito de pequenos colegas.

Continuava estupefata, sem compreender o acontecido, quando ouviu os gritos do filho mais velho. Correu o mais que pôde, animal em defesa da cria atacada, tropeçando nos móveis, esbarrando nas paredes, em direção de onde ele estava, mas ele já voltava pelo corredor, novamente não a viu e tornou a passar pelo corpo dela, antes que a irmã menor e os colegiais que trouxeram fizessem o mesmo, chorando e chamando pelos vizinhos.

Somente quando conseguiu se libertar da surpresa e tentou ir atrás deles foi que ela descobriu, num relance, que não ultrapassaria mais a soleira da casa e o que significava a visita dos mortos da família.

Com o desespero aumentando, deu meia-volta e rumou para o seu quarto, temendo o que iria constatar assim que chegasse lá. O que viu, e o que seus meninos viram, era ela mesma, muito branca, quase incolor, integrada em definitivo à paisagem dos lençóis que trocara pela manhã.

Nesse instante, observando o próprio cadáver, alheia à carne, tornou a ver os parentes extintos, à exceção da menina desconhecida que a intrigara da primeira vez. Aí, carregando sobre si a confirmação de seu novo estado, ela se arrastou lentamente até onde estava um velho baú, esquecido no sótão desde o enterro do último parente. No fundo dele, envolto em grossa camada de cupins, encontrou um igualmente velho álbum e, sem ligar para os insetos e para a poeira que se desprendeu, saltando agitadamente os retratos em vários ângulos e tamanhos de pais, avós, irmãos e amigos de outra era, defrontou-se, enfim, com o que procurava: a fotografia que agora estava ausente do filme de seus mortos. Então compreendeu todos os acontecimentos do dia, o universo espraiado diante dela: era seu o nome escrito com tímida caligrafia primária nas costas da foto.

E soube assim que também fazia parte do filme, porque já completara a memória de todas as coisas, presentes e passadas.


III

Quando os filhos voltaram, trazendo lágrimas e uma multidão heterogênea de vizinhos e curiosos, ela nem pensou em chamá-los. Apenas ajeitou, com gesto imperceptível e triste, os cabelos deles, beijou a ambos carinhosamente e, ainda sem que notassem, sentou-se à beira da cama onde estava seu corpo e enjaulou-se em si mesma, acomodada em sua condição de morta até o dia em que tiver de levantar-se e passar o filme dos cadáveres da família na memória das suas crianças.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Princípio de conversa - IV

Títulos – III

Esse discurso todo aí em cima (aí embaixo?) é só pra dizer a vcs que “Tudo tem um jeito diferente de ser. Depende do modo que a gente vê”. Não deixem que ponham vendas em vcs. Abram os olhos: “nossa única riqueza é ver” (Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos, poema VII, "Da minha aldeia vejo quanto da terra...").

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Alguém aí sabe como fazer pra esse negócio aqui não ser postado de baixo pra cima? É esquisito ler assim...

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Por hj é só. Tô pregado. Amanhã posto o comentário sobre "Três histórias" e um novo conto. Inté.

Princípio de conversa - III

Títulos – II

Pois é. Mas aí notei que, ao utilizar a palavra “living” para determinar o local em que os mortos da família eram recebidos como visitas pela tal mulher, eu fechara o campo semântico da palavra. Ou seja, nesse contexto, living significava apenas living. Foi nessa altura do parágrafo que entrou em campo uma ex-professora minha do curso de Letras-Inglês. Com aquele seu habitual jeitinho todo meigo, a Lílian falou: “Que interessante! Os mortos estão NO living”... e disse um NOU tão categórico que eu até hj me pergunto como não me havia aventado essa possibilidade. Eu só via o NO como contração de em + o; a Lílian, americana e professora de Syntax and Semantics, viu como um advérbio de negação antecedendo um adjetivo (living: vivo, vivente) e dando-lhe a acepção contrária.

Dessa maneira, o título poderia ser rudemente traduzido como “Os mortos não estão vivos”. O que poderia soar meio tosco, por excessivamente óbvio, não fosse o fato de que passo o livro todo tratando deles como personagens que recebemos na sala, como personagens vivos. Porque a morte de que trata este livro não é apenas (ou nem é) a morte da carne, o corpo estendido no chão, caixões, velórios, enterros, coisas macabras (apesar de certa professora de um cursinho aí me acusar, à revelia, de ter escrito um livro lúgubre). A morte de que trata este livro é, na maioria das vezes, metafórica, mas disso falaremos em outra hora, quando alguém aí fora disser a palavra mágica “niilismo” — vão lá perguntar ao oráculo o que é isso, só pra adiantar o meio-de-campo.

Por agora, fica assim: um hipotético título como “Os mortos não estão vivos” contrapõe-se ao que o livro “prega” e até àquela idéia kardecista de uns parágrafos atrás. Mas isso torna a leitura mais instigante: a sua atenção se desvia, vc fica pensando que é uma coisa e é outra. Um título, afinal, como diz Umberto Eco (vão acostumando os ouvidos: vcs vão ouvir falar muito dele por aqui) deve desviar a atenção do leitor, não fornecer a ele uma chave. Daí que eu gostei mais ainda do título e fui dormir em paz. Deu pra entender, Akemi?

PS: Mas a idéia de que os nossos mortos (principalmente os metafóricos) estejam nos visitando, sentados na sala, tomando um suco de kiwi, enquanto nos esborrachamos pra entender o que acontece, é que move este livro. Afinal, nós somos o que fomos.

Princípio de conversa - II

Títulos - I

O título do livro é, modéstia às favas, um achado, ainda que involuntário. Mas literatura é assim, nem tudo é fruto de escolha consciente: “Entre a intenção do autor e o propósito do intérprete”, diz Umberto Eco em Interpretação e superinterpretação, “existe a intenção do texto”. A princípio, o título era apenas o de um dos contos, que vc vai ler aí embaixo, em que uma mulher recebe na sala a visita dos parentes mortos e não entende o que está acontecendo. Ela está morta mas não tem consciência disso. Ainda não.

Eu achei que essa situação simbolizava a minha “intenção do autor”: meu livro deveria falar da morte não como fim da vida, mas talvez até como os kardecistas [corram pro Houaiss ou pra Wikipedia] falariam: como um passagem para outra etapa. Discutiremos isso como um dos temas principais do livro, ao longo deste blog. Aceito as sugestões e opiniões de vcs, que essa é a motivação principal para eu estar aqui a essas horas da noite. Toca o bonde...

Princípio de conversa - I

As três partes do todo

A primeira edição de Os mortos estão no living (1988) trazia duas divisões: “Os mortos” e “Os outros”. Se a primeira parte tratava dos mortos, “os outros”, por antonímia, só poderiam ser os vivos — aqueles que, portanto, por imposição natural, estão sujeitos à morte, como viu bem o Pedro Nunes lá no Tertúlia. Isso conferia ao livro unidade e circularidade: uma parte completava a outra, sem que se pudesse precisar qual era princípio, qual era fim.

Na presente edição, porém, acrescentei uma terceira parte, chamada, ironicamente, de “Faixa bônus”, como essas faixas extras nos cedês e devedês que os produtores não sabem onde enfiar. No meu caso, depois que a incluí, pensei ter perdido a unidade do livro, mas então percebi que ocorrera o contrário: o conto da faixa bônus, “Cada um por si”, trata, possivelmente (há leituras diferentes), de vampiros. E vampiros (presentes em várias passagens), como se sabe, são mortos-vivos, de modo que o livro passou a ter uma parte que fala dos mortos, uma que fala dos vivos e uma que fala... de mortos-vivos. A mim me parece que os mortos estão vivos ao longo dos contos. Ou não?

terça-feira, 13 de março de 2007

Poeta surpreendente

Ei, gente que gosta de (boa) poesia: abri parênteses aqui, antes do que prometi (20 de março) pra dizer que tem um garoto de 17 anos, Lucas dos Passos e Silva, escrevendo como gente grande, cheio de meios-termos, sutilezas e ironias (de quebra, ele é tricolor tb hehe). Fica devendo nada a poeta de livro publicado, não. Experimentem só este poema dele e vejam se não tenho razão:

AMOR?

Não, obrigado.
Estou tentando largar.

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O blog dele é: http://o-velho-e-a-flor.blogspot.com/. Vão lá com os sentidos abertos, como desejava o Caeiro, e tomem um porre de poesia. Desde já vou ficar indo-vindo daqui pra lá. Encontro bêbado vcs bêbados pelo caminho.

PS: Este post é porque a gente tem de fazer de tudo para divulgar coisas boas. Assim o planeta fica melhor. Literatura é puro prazer.

terça-feira, 6 de março de 2007

Três histórias

1. A noiva passa, de carro, como para um enterro.

2. Alguns moleques atêm-se a atear fogo a velhas caixas de papelão. Um cão sem dono acompanha atentamente o movimento das crianças.

3. A lua

1. É uma noiva feia, de seus vinte e tantos anos, e gestos enfadonhos. O motorista — talvez o pai da moça —, circunspecto, não repara que ela prefere ser enterrada a se casar. Mas isso não importa agora, os convivas já estão na igreja e o padre.

2. O cão, timidamente, late um pouco de amizade. Um dos moleques traz mais papel e restos de uma tábua para alimentar o fogo. Logo, logo, estarão aquecidos nesta seminoite que congela até mesmo os olhares.

3. se

1. O carro pára no sinal vermelho. O pai — se é o pai — não quer se arriscar a ultrapassá-lo, com medo de que algo aconteça à filha — se é a filha — no dia do casamento. Seguirá todas as normas de trânsito, tomará todas as precauções, para que ela chegue impune ao altar.

2. Mais dois moleques se aproximam, tiritando de frio, da fogueira. O cão sem dono abana o rabo e lambe afetuosamente o braço de um deles, que o enxota, rude. O vento ruge.

3. construindo,

1. A noiva só deseja saltar do carro e sair correndo (para onde?), mas ele recomeça sua marcha, irrevogável.

2. São mais que várias em idade, sexo e solidão, as crianças em redor da fogueira e o cão, sedentos de carinho. O calor do fogo supre, fogazmente, a falta de abraços. Olham-se de vez em quando e tornam ao seu mutismo, unidas apenas pela luz da madeira e dos papéis que se queimam.

3. pausada,

1. A noiva reza por um defeito mecânico qualquer que retarde seu sacrifício. Pai e filha — já são pai e filha — estão ligados unicamente pelo rugido do motor e do tráfego. Nunca mais, nunca mais será antes, para tomar a decisão acertada.

2. Um dos moleques, aquecido, desata uma cantiga de infância. Outros dois tamborilam os dedos magros e sujos sobre latas vazias de leite Ninho, enquanto os restantes marcam o campasso da música com palmas. O cão se enrosca, gratificado pela melodia e pelo calor, em seu próprio corpo.

3. simples,

1. O automóvel contorna a praça e estaciona em frente à igreja. Uma multidão se aglomera em volta dele, comentando o vestido e a beleza da noiva. Ninguém atenta para a lágrima dela, que abre caminho na maquilagem.

2. Um pedaço de pão passa, multiplicando-se, de mão em mão, entre os meninos, irmanando-os, calando momentaneamente suas diversas fomes. Um deles acaricia o cão e o enrola em jornais de notícias remotas. O cão, satisfeito, sussurra um agradecimento.

3. lentamente,

1. A noiva — Mendelssohn ao fundo —, empunhada pelo pai circunspecto, adentra a igreja e é entregue ao seu algoz. Nada lhe resta a fazer senão calar-se e acomodar-se ao destino que lhe reservaram. Os convidados sorriem em leque, felizes.

2. As crianças, com um pouco de querosene, ateiam fogo ao cão, que sai correndo, ganindo, ilustrando a noite com seu desespero. Os moleques riem, felizes.

3. Lua.


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Então... agora é com vc. Escreva aí nos comentários as suas dúvidas e opiniões. Exponha as SUAS idéias. Não tenha medo, palavra não morde (tá bom, a palavra "morder" morde). Só não vale tentar sacanear pra zonear o blog, porque eu sou o mediador e só vou publicar o que contribuir para melhorar a interpretação do livro.

Pra começo de conversa, saiba que interpretar significa reduzir a uma paráfrase denotativa todas as possíveis conotações de um texto. Interpretar, portanto, é mutilar. Quanto mais mutilações um texto permitir, melhor ele é. Digo isso para que vc NÃO fique pensando que o meu modo de ver o que escrevi é A verdade, única e monolítica. Não é. Minha verdade é tão-somente UMA das verdades possíveis.

De quinze em quinze dias, a partir de 20 de março de 2007, publicarei aqui um conto de Os mortos estão no living, juntamente com um post baseado nos comentários e dúvidas dos possíveis freqüentadores do blog. Espero que, ao final do ano, tenhamos discutido o livro todo e que essa discussão sirva não apenas para vc fazer uma boa prova de Literatura do VestUfes, como, principalmente, para desenvolver seu gosto pela leitura, pela escrita e pelo debate.

Talvez vc se depare aqui com algumas palavras estranhas ao seu universo cotidiano. É de propósito. Não vou aliviar, não. É pra vc ir ao dicionário, aumentar seu vocabulário, discutir coisas além de clip da MTV e Big Brother, e ampliar seu leque de recursos expressivos (já reparou que as idéias se expressam por palavras? Pois é, parece que, quanto mais palavras, mais idéias, né?...)

Em resumo: a intenção aqui é aproveitar o fato de vc ser obrigado (ou obrigada) a ler para o vestibular e colocar em discussão algumas das idéias que circulam por Os mortos estão no living, de modo que vc possa (e eu também) ter mais coisas em que pensar. Vai encarar?