domingo, 24 de junho de 2007

As ninfas camaleônicas

Para Bernadette Lyra


Dormitavam ambas, indeléveis, esquecidas num tempo sem paisagens, nem rumores, nem pretensões de ocasião. Um camaleão policrômico penetrou por uma fresta mal apagada, cobiçou-as e, só então, ousou adentrar-lhes as fraldas e os momentos.


— A tua boca não é deste mundo.

O teu suor não cabe o teu ser.

O teu olhar nos fere tão fundo!

Que face é essa que vens nos mostrar?


A primeira delas, parecendo que já o esperava, interrogou-o quando ele mal levitava sobre suas ancas. A segunda, nem bem a outra terminou e já perguntava, completando a idéia que ficara no ar, feito um jogral, com estrelas onde haveria olhos belos e inquisidores:


— Que pasmo é esse que vens nos trazer?

Que espasmo é esse que vens nos roubar?

De onde é teu cheiro, teu cuspe, teu gosto,

que contas as gotas do nosso calar?


O camaleão policrômico, apanhado desprevenido, pendurou-se pelo rabo numa viga do teto e cantarolou um acalanto, evasivo. Ficou olhando à distância os seios imaculados e sutis que elas lhe proporcionavam, com a vontade de tê-los que as pessoas têm quando com saudades. Mas não podia. A paixão, não lhe era dado conceber.


Disfarçou o êxtase crescente, espantando a lua, que espiava, curiosa, pelos buracos do vazio. Porém, logo voltou a desejá-las, elas que, sem pudor, lhe ofereciam corpos e insolitez nos gestos e nas palavras.


— Que amor é esse a nos tragar o porte,

a nos fugir ao tato, a nos ferir a noite?

— Que coisa é isso a nos lamber o corpo,

a nos trazer encanto, infâmia, mel e sal?

— Surgiu ao léu, já sabe a céu, saiu à mãe?

— Terá jardins, rua calçada, escada à lua?

— Que coisa é isso a nos tomar o espaço?

— Que coisa é isso a nos roubar ao sonho?


Uma falava com a boca da outra, suplicante. Supliciante. Ele não sabia qual delas desejar mais, não conseguia apreender o sentido exato do que ouvia. E via o sexo de ambas, que falavam por si, mas um pelo da outra, movendo-se lenta e docemente, vertendo os sons em longos suspiros de prazer e imoralidade. O camaleão policrômico não podia imaginar quanto tempo ainda conseguiria manter-se pênsil e distante: cada vez mais sensuais e febris, elas se acariciavam mutuamente e o chamavam, chamavam, chamavam:


— Por que não vens, se nos tiraste à sorte?

Por que não falas, se nos roeste o nó?

Ou não nos matas, se é desaguar, a morte,

de um instante em outro, adiante, e só?


Era um jogo da verdade e o camaleão policrômico, surpreendido nele, não podia mentir, de modo que rasgou um pedaço azul-solidão de sua pele e o engoliu, para se revigorar.


A que falara antes (qual?) estendeu a mão e tocou o local descarnado. Na obscuridade em que se encontravam, sentiu alguma cosia áspera, como uma casca de ferida, mas não retirou a mão. Ao contrário, trouxe a da companheira até a sua e implorou, ao mesmo tempo que se incorporavam uma à outra, em meio ao mar de lençóis, sangue, nácar e suor que se formou:


— Tira-me a pele, o meu jejum me dói.

Tira-me a vida, a lida, a ferro e dor.

Leva-nos longe, ao barro que constrói

a tua força e o teu ficar sem som.


Vencido, o camaleão policrômico desistiu do que viera fazer, sorriu, condescendente, de si mesmo e absorveu todas as luzes.


E instaurou-se a Escuridão.

Comentários

Só pra pôr um pouco de ordem aqui: a partir de 6 de agosto (aí, moçada que gosta de escrever datas e horários com um O - zero - na frente: isso não existe não, tá? Melhor escrever assim: 6 de agosto, 8 de maio, 7h32... e não 08 de maio, 07h32)... Então. A partir de 6 de agosto, começarei a postar comentários aos contos já publicados. E tentarei publicar os contos semanalmente. Percam o medo, entrem no link de comentários aí embaixo (ele está aí para ser usado, não para enfeitar o blog) e façam sugestões, digam o que pensam, falem de suas dúvidas. Na medida do possível, vou tentar esclarecer, assim sem o objeto direto mesmo, só de sacanagem com os gramáticos. Mas lembrem-se: apesar de o papa (coitado!) bater-se contra o que chama de "ditadura do relativismo", não existem verdades absolutas. Toda verdade é relativa e depende dos olhos de quem vê.

Inté...

sábado, 16 de junho de 2007

Parênteses para assunto mais sério que literatura no VestUfes

Nós não precisamos de religião. Precisamos é de Ética.
— Dalai Lama


Gente, um senador (Marcelo Crivella) está quase aprovando um projeto no senado (aquela casa de santos) que permitirá à igrejas fazer uso dos (parcos) recursos da Lei Rouanet de incentivo à cultura para promover reformas em templos religiosos. O sujeito é "bispo" da igreja universal, a quadrilha liderada por Edir Macedo. Imaginem que legal para eles botarem a mão, sem esforço e sem risco de a Polícia Federal chegar junto, em um naco do quase um bi de reais disponível na Lei Rouanet para promover a cultura no Brasil. A lei, por meio de renúncia fiscal, destina-se à produção de filmes, livros, peças de teatro, circo, literatura, dança, música... enfim, da cultura brasileira em suas diversas manifestações. Já pensaram como os pastores estão assanhados com a possibilidade de parte dessa grana toda ir parar em seus bolsos?

E tem mais: as igrejas já são (caiam da cadeira os que não sabem disso) isentas de todo tipo de impostos, enquanto nós que ralamos diariamente deixamos, também diariamente, quer desejemos ou não, quatro doze avos de nosso trabalho nas mãos dessa corja de políticos, juízes e empresários corruptos que assola o país. Vcs sabiam que as igrejas não prestam contas da "mixaria" dos dízimos a ninguém? Vcs sabiam que o Salesiano, o Americano, o Sacré-Coeur e uma penca de outras escolas que cobram fortunas de seus alunos são isentas de impostos por, supostamente, serem entidades religiosas? Se pelo menos o cursinho ou a faculdade lá fosse gratuito ou não custasse os olhos da cara, né?... Pois é, se não bastasse isso, agora vem esse senador cretino (desculpem o pleonasmo vicioso) aí e quer tirar da gente mais dinheiro ainda pra favorecer seus cupinchas e suas malfeitorias. Assim não vale. Se valer, e se Deus é comércio,vou abrir uma igreja também...

Então. Aí um grupo de pessoas inconformadas com a sacanagem toda bolou um abaixo-assinado que está circulando na Rede. Assinem também e divulguem pra todo o mundo que vcs conhecem. O link é o seguinte:

Não à Lei Rouanet para "templos religiosos"

Estou cada vez mais indignado. Vamos parar de ser passivos. Tá na hora de usarmos esse potencial de comunicação todo que está em nossas mãos para mudar o Brasil. Chega de passividade! Ou a gente acaba com os vermes ou os vermes acabam com o país.

Fechem os parênteses.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Casamento


Para Tânia R.



A noiva quer espaço para si, para seu próprio ato. Não o átrio desta igreja, o pároco, os convivas. A noiva quer o amante, não o noivo. Quer sorver de novo o mel dos lábios dele e o calor de sua pele e o seu olhar lascivo, compassado. Deseja a música das mãos que ainda — entre — têm seus seios recentes. Quer de volta a magia, não o bolor; a descoberta, não a passividade; a delícia, não o horror.

Entrementes, ouve-se um martelar de Mendelssohn e sinos. Selam seu destino. Triste sina: não é um véu, mas mortalha, que a cabisbaixa carrega, presa. Não é um padre: é um juiz, quem lhe cospe ladainhamente seus pecados, pelos quais a curva longa e duradoura que ela imaginou para longe deste tribunal não lhe será permitida, a fuga. Assim também sabe-se do ouro desses que o noivo tira grilhões do bolso e que o juiz abençoa, em nome do carrasco e do filho, amém, que, à sua direita, lhe dilata o medo.

Teima a noiva, inquieta, em relembrar o amante. Teima em ter no corpo, entranhado, imediato, o cheiro dele e a paciência e a calma dele, coisas tornadas lugares onde seus mais intrínsecos desejos foram expostos e satisfeitos (é claro, o noivo — o turvo — saberá disso quando for executar a sentença — porque há uma sentença, como houve um crime e haverá uma execução).

Pensa ela, posto que desarmada, abrir o vestido e mostrar no peito, à platéia, as marcas do outro, o original: os beijos, carícias, rastros de sensual serpente impressos em cor indecifrável sobre a carne onde houve espaço e onde o aço das unhas sulcou sua pele e a mapeou e ela foi possessão e território dele e não houve quem mais a invadisse. Teima esta noiva bela e delicada em freqüentar outra fantasia, em rolar de novo, abraçada no seu homem, entre lençóis de cetim, com acompanhamento de grilos e lua e Debussy. Teima em não estar aqui.

O noivo, esse teima-lhe a mão. O juiz pergunta algo, Deseja por sua livre e espontânea vontade esta punição, que ela responde laconicamente, responde, indiferente, para sim. Está no fim o rito com que amortalham seus últimos resquícios de esperança. Poderia aspirar a outra coisa senão a este castigo?

Um dos convidados tem uma lágrima pronta para jorrar assim que houver oportunidade de aparecer nas fotografias. A mãe do noivo mal disfarça sua excitação crescente, feito se o filho, ao possuir daqui a pouco a noiva, pudesse vingá-la, mãe, de humilhação semelhante que não pôde ser perdida entre os objetos amontoados nos porões da memória. Uma criança, com ar anjo, leva flores de um lado da igreja e a outro, imorrediça. Seria um enterro? A noiva sente-se como. Quase pode sentir os pés flutuando no caixão acolchoado e o cheiro a formol e o algodão no nariz.

Mas então, consumada a cerimônia e conhecido o veredicto, ela vê o amante. No meio do povo, ele se levanta, silencioso, e esse silêncio é triste. Ele sorri, e seu riso é reticente. Ela não se contém e chora. Pensam que é a emoção do casamento, não a desolação. Ela sofre todos os cumprimentos calada.

De súbito, porém, o amante não se consola e rasga o ar com sua adaga de voz, beduíno que interrompe o deserto, e a chama. Acesa, ela atira para trás a aliança e, dando a mão ao amado, dá-se por inteiro sua ressurreição: e canta e dança, levita no ar, de tal forma e tanto que compreendemos o milagre ocorrido e atiramos neles os castiçais e as estátuas, os altares e os santos, os tapetes, os bancos, os paralelepípedos da rua, para que não fixassem pedra sobre pedra — e sobre esse fato edificaremos a nossa farsa.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

E o blog, hein?

A Isabela começou, a Josely deu um empurrão o agora campeão brasileiro (Nenseeeee!) Lucas entrou na onda. Então: o blog de poesia tá no ar. Meio que em construção ainda, mas tá lá o esqueleto dele. Vejam em http://marvilla-poesia.blogspot.com. Agora é com vcs. Pra vcs. E esta semana cuido deste aqui, tadinho, entregue às moscas, que nem a defesa do Flamengo diante do Figueirense...