quarta-feira, 13 de junho de 2007

Casamento


Para Tânia R.



A noiva quer espaço para si, para seu próprio ato. Não o átrio desta igreja, o pároco, os convivas. A noiva quer o amante, não o noivo. Quer sorver de novo o mel dos lábios dele e o calor de sua pele e o seu olhar lascivo, compassado. Deseja a música das mãos que ainda — entre — têm seus seios recentes. Quer de volta a magia, não o bolor; a descoberta, não a passividade; a delícia, não o horror.

Entrementes, ouve-se um martelar de Mendelssohn e sinos. Selam seu destino. Triste sina: não é um véu, mas mortalha, que a cabisbaixa carrega, presa. Não é um padre: é um juiz, quem lhe cospe ladainhamente seus pecados, pelos quais a curva longa e duradoura que ela imaginou para longe deste tribunal não lhe será permitida, a fuga. Assim também sabe-se do ouro desses que o noivo tira grilhões do bolso e que o juiz abençoa, em nome do carrasco e do filho, amém, que, à sua direita, lhe dilata o medo.

Teima a noiva, inquieta, em relembrar o amante. Teima em ter no corpo, entranhado, imediato, o cheiro dele e a paciência e a calma dele, coisas tornadas lugares onde seus mais intrínsecos desejos foram expostos e satisfeitos (é claro, o noivo — o turvo — saberá disso quando for executar a sentença — porque há uma sentença, como houve um crime e haverá uma execução).

Pensa ela, posto que desarmada, abrir o vestido e mostrar no peito, à platéia, as marcas do outro, o original: os beijos, carícias, rastros de sensual serpente impressos em cor indecifrável sobre a carne onde houve espaço e onde o aço das unhas sulcou sua pele e a mapeou e ela foi possessão e território dele e não houve quem mais a invadisse. Teima esta noiva bela e delicada em freqüentar outra fantasia, em rolar de novo, abraçada no seu homem, entre lençóis de cetim, com acompanhamento de grilos e lua e Debussy. Teima em não estar aqui.

O noivo, esse teima-lhe a mão. O juiz pergunta algo, Deseja por sua livre e espontânea vontade esta punição, que ela responde laconicamente, responde, indiferente, para sim. Está no fim o rito com que amortalham seus últimos resquícios de esperança. Poderia aspirar a outra coisa senão a este castigo?

Um dos convidados tem uma lágrima pronta para jorrar assim que houver oportunidade de aparecer nas fotografias. A mãe do noivo mal disfarça sua excitação crescente, feito se o filho, ao possuir daqui a pouco a noiva, pudesse vingá-la, mãe, de humilhação semelhante que não pôde ser perdida entre os objetos amontoados nos porões da memória. Uma criança, com ar anjo, leva flores de um lado da igreja e a outro, imorrediça. Seria um enterro? A noiva sente-se como. Quase pode sentir os pés flutuando no caixão acolchoado e o cheiro a formol e o algodão no nariz.

Mas então, consumada a cerimônia e conhecido o veredicto, ela vê o amante. No meio do povo, ele se levanta, silencioso, e esse silêncio é triste. Ele sorri, e seu riso é reticente. Ela não se contém e chora. Pensam que é a emoção do casamento, não a desolação. Ela sofre todos os cumprimentos calada.

De súbito, porém, o amante não se consola e rasga o ar com sua adaga de voz, beduíno que interrompe o deserto, e a chama. Acesa, ela atira para trás a aliança e, dando a mão ao amado, dá-se por inteiro sua ressurreição: e canta e dança, levita no ar, de tal forma e tanto que compreendemos o milagre ocorrido e atiramos neles os castiçais e as estátuas, os altares e os santos, os tapetes, os bancos, os paralelepípedos da rua, para que não fixassem pedra sobre pedra — e sobre esse fato edificaremos a nossa farsa.

8 comentários:

Anônimo disse...

São Miguel, o casamenteiro, rs
mais uma noiva pronta pro enterro!
Enquanto penso na situação lembro a Inês Pereira e nesse foco sobre o casamento.
Mas...o fato e a farsa,
farsas sobre farsas???

Miguel Marvilla disse...

Ops! Gil Vicente, moça? \o/ Uau! Tá me saindo uma leitora de olhos (bem) abertos (nada a ver com aquele filminho horroroso do chatíssimo Kubrick)... Afinal, quem é vc?

Sobre farsas: o livro todo (Os mortos...) é sobre farsas. Eu quis desse jeito. A farsa é a tônica do livro. Se reparar, em "O vampiro, Deborah", por exemplo, tem uma fala do narrador assim: [Parece poesia? É poesia.]. Sem contar que "Uma borboleta atravessa o set e faz um pouso azul na borda de um copo de cristal". Set, poesia, farsa. Como todo niilista ativo (mais ou menos como pretendia Nietzsche) eu quero mais é que os valores tradicionais (casamento, religião, senso comum, p. ex.) se danem e abram caminho para novas visões de tudo. Os humanos, seremos então talvez não melhores, mas outros. Faz sentido? Sei lá. Era pra fazer? ;-)

Lua disse...

Os mortos de Marvilla me seduziram, a ponto de ler o livro 3 vezes seguidamente, declamei " O vampiro segundo a vítima" pra ele no CSJ, é fantástico suas farças, os cenários, os personagens, a lua, que ao meu ver é a responsável por várias situações do livro, os vampiros, os fantasmas, as begônias,os outros, enfim, Os Mortos estão entre os melhores que já li!

Miguel Marvilla disse...

Oi, Luanna. Eu me lembro de vc declamando pra mim no Colégio São José. Fiquei emocionado. Acho que nem consegui agradecer adequadamente. E agor, vc repete a dose, com esse comentário tão delicado. Obrigado, mais uma vez.

Se quiser fazer uma visita também ao meu blog de poesia, o endereço é http://marvilla-poesia.blogspot.com. Tem um link aí do lado de fora, acho.

Anônimo disse...

Olá
(é a primeira vez que visito o blog)
(é a primeira vez que visito UM blog)

Encontrei o blog quando fiz uma pesquisa no google pra ver se eu achava algum site ou artigo que fizesse análise sobre o livro (vida de vestibulando)

Mas já que encontrei o próprio miguel marvilla... hehehe

Confesso que seu livro é diferente de tudo o que eu havia lido antes, (talvez por isso eu penei pra conseguir entrar no clima psicodélico do livro.)
Minha professora de literatura deu alguns palpites dos livros que o vest ufes cobraria na prova (seu livro foi um palpite).

Posso estar enganada, mas o provavel é que o vest ufes cobre uma análise geral dos contos, algo sobre o estilo de narração, etc

o que você acha?

Anônimo disse...

Estou lendo o livro os mortos estão no living, para o vest ufes. Também, gostaria muito de saber como você acha que pode ser cobrado esse livro no vest?

Parabéns pelo livro!!
Muito bom!

Miguel Marvilla disse...

Anônimo, sinto muito, mas ninguém tem a menor idéia do que pode ser cobrado na prova da Ufes.

Boa sorte.

Anônimo disse...

Por que nao:)