quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Fééééééééériaaaaasssssss!!!


Depois de quase dez anos sem férias, este escriba resolveu, a partir desta sexta, 21 de dezembro do ano da graça de 2007, desligar os motores e ir pra Barra Seca*, adorar o sol e ajudar a aumentar o aquecimento global com uma churrasqueira ligada full-time.

Espero que as conversas aqui tenham sido úteis ou, pelo menos interessantes.

Volto ano que vem, depois do carnaval. Ou não.

Quem for brasileiro que me siga. Fui.



* Barra Seca é o paraíso: não pega celular, não tem internet, a única televisão de um boteco na beira da estrada empoeirada serve de pedestal pra um jarro de rosas artificiais, o mar está cheio de sereias, e peixes e camarões saltam da água nas mãos da gente... Energia elétrica, acho que tem...

sábado, 15 de dezembro de 2007

Sugestões para a Ísis, às portas do VestUfes

Ísis, para bem interpretar qualquer coisa, é necessário primeiro conhecer os termos dessa coisa. Ou seja, antes de tentar ver o que há nas entrelinhas é preciso ver o que há nas linhas. Vc vai se surpreender. Por exemplo, em "Os fetos, as begônias", as chaves interpretativas estão notítulo: fetos e begônias. Palavras têm vários sentidos, às vezes simultâneos. Nesse caso, begônias são, obviamente, flores e fetos tanto podem significar embriões quanto... samambaias. Aí já se estabelecem duas relações tendo como centro o personagem que leva os fetos e os coloca no subterrâneo: uma, que fala de enterrar embriões, o que dá ao conto certa aura de terror; outra que fala de colocar samambaias junto com begônias, como alguém que cria um jardim particular longe dos olhares da mulher (ela não sabe, está dito aí em algum lugar).

Parece-me que o autor (este escriba que escreve neste momento - 18h55 de sábado, 15 - atabalhoadamente, num cybercafé em Mantena, apenas para te dar mais coisas em que pensar), pareece que ele pretendeu falar das coisas que mantemos escondidas. Problemas ou mentiras, frustrações ou rancores, dores ou invejas, nossos pequenos e grandes crimes cotidianos, sempre que essas coisas são jogadas debaixo do tapete ou escondidas nos porões, sempre que não temos coragem de mantê-las à tona, de dizer o que queremos, de expressar nossos sentimentos, essas coisas se acumulam, formam um lixo tóxico e uma hora, quando vc se esquece delas, quando menos espera, elas saem do escuro em que estavam e , como samambaias e begônias, partem em direção à luz, num espetáculo de fototropismo para o qual, na maioria das vezes, não estamos preparados.

Tem mais coisas aí, Ísis, mas esse tempo do cybercafé está se esgotando (pasme, eles fecham às sete e já tem uma senhora quase me mandando embora), então, espero que algo aqui tenha sido útil.

Os fetos, as begônias

Os mortos vão bem, guardados na terra

Que os aquece e os mistérios lhes encerra.

— Paul Valéry


Não eram pó, ao pó não tornariam. Eram carne, sangue, sexo de seu sexo, mesmo assim, munidos que estavam de a-feições, divinos divididos filhos do falho útero de Deus. Eternally.

Foram recusados sete vezes e sete vezes sete seriam ainda expulsos do convívio com a Divindade, antes de apreenderem por experiência própria que não eram tantos, mas um, que se desdobrava, de forma que achou melhor conservá-los à parte uns dos outros para que não se reunissem de novo e não se multiplicassem, fazendo com que a noite desça sobre o mundo, e se rasgue o véu do tempo, e não se veja mais o dia.

O cheio acre a formaldeído, inundando o âmbito em que os deixava. Ficariam ali, no escuro, donos incontestes de seus quase gestos e de suas quase formas peculiares, transpirando seus desejos, ruminando suas limitações e seus ódios, mas cada qual à parte, patente em sua redoma de vidro e formol. Ele viria toda noite. Sabia acalantos vários e dispunha de notas suficientes para niná-los eternamente.

Eles não chorariam, tinha certeza, e não sentiriam fome, mas, até se sentissem, isso já estava previsto: comeriam os próprios estômagos, de maneira que o espaço que ocupavam não careceria jamais de amplidão, pois o que crescessem além do possível serviria para, amputado, alimentá-los. Eles concordariam.

A mulher não saberia de nada. Ela, além do mais, teria de compreender se soubesse. Mesmo porque, se fizessem tudo certo, não haveria pânico na vizinhança, nem explicações à polícia, nem jornalistas à porta. Nada poderia denunciar a existência dos fetos nos vidros de formol, porque suas raízes foram fixadas bem fundo. Os fetos não se incomodariam, certamente, de nunca mudarem de lugar. Melhor para eles, que permanecessem quietos nessa superfície escura do que se tivessem que disputar seu espaço na umidade do subsolo com as formigas e os escorpiões.

Pensando assim, ele cimentou a base dos vidros, para que vento algum os derrubasse (seria uma lástima ter embriões vagando pela casa, cobrando seu dasein, poderiam espantar as visitas) e se foi, fechando a porta, devagar, para não acordá-los, agora que descansavam.

E ele vinha, como prometera, todas as noites, por desencargo de consciência ou por amor. Até que, sem explicações, não veio mais. E todo movimento cessou.


Então, guiando-se por um raio de sol incrustado em algum lugar, eles se ergueram, todos juntos, romperam a entrada da vagina e irromperam no jardim, misturando-se, verdes, às begônias.

domingo, 9 de dezembro de 2007

D. asm / Alice e a redação no VestUfes

Aqui embaixo, no post Pink & Floyd, a sra. asm (ou Alice, ou Anônima), a (ex) tímida, escreveu:

"Eu gosto de escrever, gosto de algumas coisas q escrevo, mas tenho dificuldade de falar em público, e tb de escrever com alguma pressao: tempo, tema q eu nao domine, e o principal, saber que estao avaliando o texto, fazendo um julgamento. Tenho certeza q na prova vou deixar muito a desejar por causa desses fatores, tb pq gosto de escrever mais poemas, coisas + subjetivas.
O q vc acha q devo fazer nesse pouco tempo q tenho para amenizar esse problema, acho q muitas pessoas devem se sentir assim tb."

Então... eu acho que vc já tem um bom e um péssimo começo, simultaneamente. O bom, claro, é gostar de escrever. Isso já faz de vc alguém para quem uma caneta é algo tão natural quanto sentir sede. O lado péssimo é que, por medo, vc já começa derrotada ("Tenho certeza q na prova vou deixar muito a desejar"). Daí que, a primeira coisa a fazer é relaxar, acreditar em vc, ter confiança nas suas qualidades e entrar no jogo pra ganhar. As redações da Ufes não são meramente subjetivas (mas subjetividade ajuda muito): antes, exigem dos candidatos uma série de habilidades e conhecimentos objetivos. Nesse ponto, o melhor a fazer é treinar a escrita sob pressão (marque um tempo e pratique sozinha ou com a ajuda de alguém, para controlar a ansiedade) e, principalmente, ler, ler muito (que, aliás, é o que todos deveriam ter feito durante o ano): quem lê muito pode não escrever, mas quem não lê, com certeza não escreve — por falta de assunto.

Abre parênteses: meu filho, Frederico, teve aulas particulares com José Augusto Carvalho. Frederico era muito bom em gramática, sintaxe e ortografia. Um dia José Augusto me disse: "Seu filho escreve muito bem... sobre nada". Faltava conteúdo. A partir daí a gente intensificou as leituras dele e ele foi aprovado na UFMG. Fecha parênteses.

Leitura não é pesadelo de vestibulando. Enfiam isso na cabeça de vcs, mas é o contrário: ler é prazer diário. Na medida em que encontramos prazer no que fazemos, o que fazemos fiza bem melhor. A vcs, meninos e meninas da Ufes, aconselho que se habituem a ler pelo menos uma revista por semana. TODA SEMANA. O RESTO DA VIDA. Descontando os defeitos que todas têm, Veja, Época, Carta Capital, IstoÉ, são ótimas fontes de informação (quem souber inglês ou alemão pode tentar a Time e a Der Spiegel hehe). Além disso, o cuidado que dedicam à sintaxe, à gramática e à ortografia (sem contar o estilo de escrita) faz com que a gente aprenda essas coisas na prática, por osmose, sem ficar se estressando com todas aquelas nomenclaturas esquisitas. Das revistas em circulação por aí, a minha favorita é a Piauí, que aborda assuntos os mais díspares (de matéria com o vigia de um banheiro subterrâneo em Copacabana a uma discussão sobre a percepção da beleza — uma matéria fantástica com um dos maiores violinistas do mundo, Joshua Bell, tocando anônimo, com um Stradivari!, numa estação de metrô em Washington), de maneira inusitada e muito, muito, interessante.

Quando falo em leitura, falo em ler tudo que passar pela frente: anúncio de absorvente, placa de ônibus, bula de remédio... mas falo principalmente de livros, jornais e revistas. É com as idéias contidas neles que a gente alimenta a inteligência, a sensibilidade, o espírito. E é com isso que vcs farão a prova de redação (e outras) no VestUfes. O melhor, porém, é que, passado o vestibular, o que se leu permanece, faz parte de quem vc é.

Defendo a leitura de TODOS os livros que a Ufes indica: é uma oportunidade para que se conheçam muitas novas idéias (ainda que ninguém seja obrigado a concordar com elas). Não acreditem que não há tempo para a leitura e que a leitura é rodapé do vestibular. Talvez sejam poucas as perguntas na prova, mas as perguntas que vcs se farão ao longo da vida certamente se multiplicarão. E podem apostar: é muito mais importante fazer perguntas do que dar respostas (se ninguém tivesse perguntado "Que fungo é esse?", hj não teríamos a penicilina). Por isso, meninos e meninas, e em especial vc, d. asm/Alice/Anônima: NÃO LEIAM RESUMINHOS, a menos que já tenham lido os livros. Resuminhos são inúteis para o vestibular, depõem contra a inteligência de vcs, diz que vcs são preguiçosos e incapazes de entender o que lêem (o resuminho "entende" pra vcs) e só servem para que, nesse caso sim, vcs percam tempo.

Por falar nisso, então, resumindo: leitura é fundamental para uma boa prova de redação, livros e revistas e jornais (apesar das más notícias) dão prazer para o resto da vida (ao contrários dessses BBBs) e praticar a escrita diariamente é a melhor forma de se livrar do stress e do medo para a prova. Afinal: nós somos o que fazemos cotidianamente. A excelência é um hábito, não um acidente.

Boa sorte a todos nas discursivas (ah, jamais, mas jamais mesmo, deixem uma questão sem resposta: inventem, digam bobagem, mas não entreguem em branco. Melhor uma resposta tosca, nada-a-ver, do que uma em branco: essa é zero mesmo).

Bjs, d. asm-Alice-Anônima.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Pink & Floyd


Só pra mudar de assunto: olhem só que gracinhas. Pink e Floyd. São dois capetas. Acabaram de destruir os fones de ouvido Philips com silicone da Pri; correm a casa toda; só querem saber de dormir atrás da geladeira ou na cama da minha mãe; tomaram posse da minha cadeira de rodinhas (cujo encosto já foi devidamente dilacerado pelas unhas deles); custam uma fortuna em ração, areinha química pra fazer xixi e cocô, vermífugo e vacina; mas são absolutamente lindos. Quando vieram pra cá, presentes do Luís e da Tatiane, há um mês + ou -, lembrei-me imediatamente do gato do Reinaldo Santos Neves, que chegou a Itaúnas e pensou que nem se vivesse mil anos ia conseguir cagar o suficiente pra usar aquele areal todo...

Putz! E repararam como o Floyd parece gato de desenho animado? Ou um gremlin, sei lá (só que ele é bonzinho)...

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Congresso de Letras

Aí, gente, tá rolando na Ufes, até o dia 23, o IX Congresso de Estudos Literários, mais uma superprodução do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL-MEL). Os encontros acontecem em vários locais da Ufes (Auditório do Centro de Artes – Cemuni IV, salas do IC-III e do prédio do Mestrado. Se clicar aqui, vc ficará sabendo de toda a programação do evento. Ainda tem muita coisa rolando e muita pra rolar até a sexta-feira.

Pena que dois congressos superimportantes (o Internacional de História e este de Letras) estejam ocorrendo simultaneamente, inviabilizando a presença de muitas pessoas, como este escriba, que gostariam de participar dos dois. Sugiro que, no futuro, os organizadores de congressos (de todas as áreas) na Ufes entrem em contato uns com os outros e tentem fazer uma programação não excludente. Isso, inclusive, manteria a Universidade na mídia o tempo todo.

• • •

Eu tava devendo este post ao Lucas. E mais o comentário ao belo livro dele. Em breve.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Livro novo!


Finalmente, depois de um tempão na gaveta, e atendendo a insistentes pressões, quer dizer, pedidos, do Gilvan, resolvi publicar a minha pesquisa de mestrado: O Império Romano e o Reino dos Céus, segundo volume da Coleção Biblioteca Universitária, da Flor&cultura. Nesse livro eu analiso um discurso ("De laudibus Constantini") pronunciado no século IV por um bispo palestino (Eusébio de Cesaréia) no Jubileu dos trinta anos de governo do imperador romano Constantino, tido como o primeiro imperador cristão, o governante romano que não apenas acabou com as perseguições aos seguidores de Cristo como também restituiu-lhes a liberdade, promulgou leis favoráveis a eles e concedeu-lhes privilégios (isenção de impostos, por exemplo... é, essa sacanagem vem de 1.700 anos) e riquezas tais que, em pouco tempo, no espaço de uma geração, eles passaram de perseguidos a perseguidores e tornaram-se o alicerce moral, ético, intelectual e espiritual do Ocidente.

Mas o barato desse discurso do Eusébio é que, mesmo sendo um discurso cristão (e grandinho: a versão moderna tem 80 páginas no formato 14 x 21. Imaginem aquele calor desgraçado do verão em Constantinopla, ano 316, sem ar condicionado, e um bispo lendo 80 páginas, em grego... e ai de quem saísse.), então, mesmo sendo um discurso cristão, ele não fala uma única vez sequer no nome de Cristo, em crucificação ou sacrifício, essas coisas tão caras aos cristãos. Por que um bispo, diante de um imperador cristão (de fato, porque de direito ele só se batizou na hora da morte) que governava quase por consenso, não fala em o nome de Jesus? As hipóteses são várias, respostas definitivas não há.

Se vc quiser saber mais, esteja lá, no coquetel de lançamento, na sede da Adufes, quarta que vem, 21, às 19h00. A Adufes é aquele prédio com frente de vidro ao lado da "penteadeira de bordel" (o prédio da FCAA), na Ufes. Quem quiser comprar, leva R$ 25, que este escriba quer ir a Paris de novo ano que vem. Quem não quiser, está convidado e será bem-vindo do mesmo jeito, que o mais importante é a conversa e o abraço.

Congresso Internacional de História, na Ufes


Outro troço imperdível. De 19 (segunda) a 22 (quinta) de novembro, alguns dos melhores historiadores brasileiros — tipo Gilvan Ventura da Silva, Adriana Campos, Manolo Florentino, Norma Musco Mendes, João Fragoso e Norberto Guarinello, entre outros —, mais os franceses Pascale Girard e Georges Lomné, estarão na Ufes para o XVI Simpósio de História da Ufes / Congresso Internacional Ufes/Université de Paris-Est (Marne-la-Valée).

Se isso não for atração suficiente para vcs, saibam que este escriba vai estar lançando livro novo (O Império Romano e o Reino dos Céus) lá, na sede da Adufes, às 19h00 de quarta, 21; e vai estar apresentando, às 14h00 de quinta, 22, no IC-3, uma comunicação coordenada pela Ana Gabrecht. Ponham-se a caminho, então, e a gente se vê lá.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A terceira realidade

I

Uma corrente de ar frio penetrou pela fresta da porta. Ela interrompeu momentaneamente o sonho agitado, encolheu com sensualidade as pernas e puxou as cobertas para a cabeça. Restos de uma sonata de Händel e de alguns improvisos de Schubert permanecem pelo espaço, emaranhados ao odor de jasmins e à respiração dela em ré menor, opus 125, para cravo e violinos. Materializados na atmosfera, corpos suados, de um passado ainda quente, teimam em não se perder na distância da memória. Um gato barítono, em tom degradée, era para sempre no cesto de revistas, aquecido entre as coxas belas das mulheres também que as povoavam, ilustrando-se de erotismo e beleza.

Parcialmente misturada à realidade, ela pensou como seria bom se chovesse e tornou a adormecer completamente. Pois choveu. Uma chuva brava, violenta, que, em sua ferocidade, arrastava casas, arrasava bairros inteiros, carregava pontes, ruas e avenidas, tornando de água o mundo todo.

As coisas emboloravam, mas ela vicejava em seu ambiente bucólico, os corpos oleosos de suor: ela, valsas, e ela, as mãos sempre buscando mais o que acariciar, famintas. Abraçavam-se, sorviam-se, mel na boca, o corpo retesado, ela ali, ela, enfim, os olhos e sua luz aluada, a outra ficava azul e já não eram distintas uma e outra, Schubert ao fundo, sustenido, suspensas as duas no ar, até que é hora de perder a qualidade de pluma, de descer pela escada de jasmins, de retornar ao chão.

Ei-lo, então, o velho planeta e seus objetos molhados. Tocou-se, desperta, a ver de onde provinha toda a umidade em volta. Redescobriu a suavidade da pele. Abandonou-se, lasciva, ao próprio toque, excitada. Os seios arfavam. Não era ela em si se tocando, mas a outra, a que se fora. A que — ainda — estava.

Os seios, homenagem de algum deus à estética, insistiam em seu descontrole. De súbito, ela se ergueu por alguns segundos, sustentada por gestos invisíveis, arqueou o corpo e, depois, deixou-se ficar, após um gemido mais prolongado, sobre o cetim das almofadas.

O gato listrado também se movera de seu cesto de revistas. Por entre as samambaias, avistou-a, arfante, envolvida em sua dupla realidade, alheia a uma terceira, a que chovia e respingava, pela janela aberta, o tapete branco. A terceira realidade está se alastrando para dentro da casa, pensou o gato, acomodando-se perto da lareira. Ao mesmo tempo, gostaria de saber a quem creditar todo o líquido que invadia seu antes morno ambiente, se aos pesados cúmulos-nimbos, que escondiam com seus cristais de gelo o céu conhecido, ou se àquela mulher acetinada que parecia não se satisfazer com as mãos continuarem os braços, porque as experimentava em todas as partes vistas e não vistas do corpo, despreocupada em conter o rio viscoso que nascia em si.

Quando, por fim, ela retornou de vez à cama e às almofadas, deu-se conta de como ficara estranho tudo. As coisas que entrevira em seu delírio apenas úmidas estavam na verdade encharcadas. Não as reconhecia agora, que eram como antes que ela as observasse de outro ângulo. Os objetos amorfos, fantasmas sem cheiro nem cor, que compunham suas sensações, de novo eram só restos e uniformes entregues aos seus limites, repletos de suas coerências, já que ela voltara. Não conseguia apreender o sentido de mudarem assim, radicalmente, abdicando de seu lirismo e de suas liberdades, resignando-se, passivas, ao tato e à forma. Qualquer hora dessas precisava ausentar-se novamente, romper a casca desse mundo plausível em que nada se permite além do previsto e do usual.

Mas não. Não seria possível fugir outra vez: havia muito que elidir, muito que transpor, e ela já não tinha forças suficientes para isso, tanto se desgastara nessa última fuga. É preciso um tempo para permanecer, para também acomodar-se, e é agora.

Diante dessa constatação, uma lágrima brilhante, límpida, abandonou seu esconderijo e percorreu em silêncio um caminho sinuoso, torto, pelo rosto dela até despencar sobre a alvura plácida do seio. Ela sentiu o contato cálido da lágrima no peito, mas não fez gesto algum. Apenas chorou mais, de dor, de impotência, e as lágrimas irmanaram-se à chuva, apagando a lareira, inundando por completo o lugar. Tudo se liquefazia rapidamente. O quarto, recém-nascido oceano, era impossível de não ser visto como tal.

O gato acordou bruscamente, assustado, semi-afogado, sob a água. Em seu desespero, emergiu junto a uma sinfonia de Haydn, que boiava como podia, misturando claves e bemóis, breves e semibreves, esbarrando em garrafas de vinho húngaro, agarrando-se a peças de roupa, que, imediatamente, afundavam e não voltavam à superfície.


II

Longe dali, outra mulher, tão bela quanto serena, descobriu-se só. Nada com que se ocupasse preenchia o vazio que a possuíra desde que, por medo, desistira de se emocionar. Agora, sentia falta da luz azulada que as envolvia quando se encontravam, da boca molhada, sedenta, do gosto particular de cada uma, do seu cheiro entranhado nela, que, no entanto, era de ambas, ilhadas em seus prazeres, ignoradas as imediações.

E esta hora, furtando-se a passar. Mas é necessário um pouco de fel. É preciso que sofram para que o seu amar-se seja mais que uma simples soma de duas. Pena que não possa ser evitado o vácuo que se formou, esse imenso vazio sem cor que a esmaga e que não imaginava tão pesado, este fardo.

Pela vidraça, a chuva lava o mundo. A janela emoldura a paisagem na parede. A enxurrada carrega sentimentos distantes e os mistura ao barro que desce das montanhas e às folhas que caem das árvores. A solidão se tornou tátil, palpável, e suas mãos a tocam, buscando suprir-se de companhia, completar o puzzle de si.

Passou dias à janela, imersa metade em si, metade no vazio. Quando, ao seu lado preenchido — o que doía pela ausência do outro — um pássaro trinou toda a “An der Schönen, Blauen Donau”, regido por Karajan, saudando o sol que ressurgia, o mundo ainda estava úmido. Então, ela ajeitou os cabelos, preparando-se para continuar sua permanência, olhou-se no espelho, e não se viu, não se viu inteira. Faltavam-lhe partes: era apenas meio-rosto, meio-riso, meio-olhar. Como as pessoas reagiriam, abraçando metade corpo, metade falta? Como se faria entender, usando meias-palavras? Não. Também é necessário retroceder, mudar de idéia. Não poderia gastar o seu tempo inutilmente, dormir abraçada ao travesseiro inanimado, rude (quando seu corpo pede mãos, pele, movimento), só por determinismo, porque assim tem de ser. E se, além disso, ela fosse se gastando mais e mais até que desaparecesse por completo? Perderia, então, qualquer outra chance que pudesse ter, pois não há novas oportunidades para os condenados à solidão. Foi pensando assim que calçou as sandálias, perfumou-se, saiu, trancou a porta e jogou a chave fora — não ia voltar.


III

Caminhava nua, mas ninguém reparava nela, não totalmente.

À medida que se aproximava de seu destino, uma sensação de angústia e excitação ia tomando conta dela. As coisas em volta, desfocadas, tomavam a forma que ela sabia tão bem. O mundo usual deixava de haver.

Quando chegou, a casa estava fechada. Olhou pelos vãos da persiana e, pela primeira vez, não reconheceu o que não-via. O lodo esverdeara as paredes e mofara as cortinas. A um canto, desalinhada, imóvel, deixando entrever os seios insatisfeitos através das tramas da lingerie, ela vislumbrou a outra. O corpo muito branco ainda tinha as suas mãos impressas por toda parte, seus lábios ainda estavam marcados em carmim sobre a alvura da pele. Ficara eternizado na outra o que já (não) era seu.

Então, ela forçou a porta até conseguir entrar. Mesmo ferindo as mãos, perfurou o silêncio quase intransponível do interior, que, vez em quando, desabava sobre ela. Algum tempo depois, cansada e ofegante, envolvia nos braços a amada, afastando-lhe as rêmoras e as algas, limpando-lhe o rosto, penteando-lhe os cabelos. E foi assim — beijando-a calorosamente — que se iludiu com que ela fosse levantar-se e falar de amor, como antes. Mas ela não se levantou e não falou de nada. Permaneceu fria, estática, sem armas.

Nesse instante, tudo perdeu o que ainda tinha de voz.


IV

Uma sonata de Beethoven desprendeu-se do teto, escorreu mansamente pela parede e, escavando o silêncio, tingiu-as de luz.


domingo, 11 de novembro de 2007

Último Café do ano


Terça próxima, 13 de novembro, 19 horas. Nem sob ameaça de guerra nuclear percam o último Café Literário que o Sesc promove em 2007. Ninguém menos que Reinaldo Santos Neves e Fernando Achiamé, com mediação deste belo (é, tem gente que acha) escriba que vos fala, vai estar lá, no palco no Centro Cultural Majestic.

A humildade deveria me impedir de dizer que é imperdível. Deveria...

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Resposta para a Paula Fiorotti 1

A Paula Fiorotti, que tem um blog cor de rosa ali na esquina (http://poesiaeexpressao.blogspot.com/), escreveu há um tempão, sem espaço entre a pontuação e a letra seguinte (uma característica muito interessante), como se assim pudesse economizar tempo para pôr mais coisas na tela, o seguinte:

"Olá Miguel,
Tudo bem?Gostaria apenas de fazer uma breve análise de seu livro "Os mortos estão no living" com o intuito de saber o porquê dessa temática.Sua obra explora a morte,que é um assunto polêmico,pois nada se sabe sobre ela,ou quando se sabe,é omitido.Você escolheu abordar esse assunto por ele ser encarado na sociedade atual como algo enigmático e misterioso?Porque somente quem leu seu livro, sabe o quanto isso é verdadeiro e presente nos seus contos.São belas narrativas carregadas de aliterações e sinestesias e dentro de tudo isso,percebemos(nós,leitores) que a morte é sim,uma forma de descrever diversos eventos que não se fundem,como é a proposta do seu livro.São textos independentes,sem personificação e você ainda consegue,maravilhosamente bem,concretizar algo tão abstrato em nossas mentes,alguns devaneios,certas loucuras,diria assim.Em se tratanto de tanta peculiaridade,foi esse "mistério" ao redor da morte que o fez escrever o livro?Interesso-me em saber porque, é fascinante o modo com o qual não moralizou sua obra,mesmo tendo uma temática tão pouco "bem explorada".Ainda curiosa,gostaria de saber se o termo "living" seria a justificativa para mostrar que os mortos estão em nosso meio,por toda a parte,sempre presentes?Um abraço."


• • • Vai daí que:

Paula, pra começo de conversa, discordo um pouco de vc quanto a achar que a morte é uma temática “tão pouco ‘bem explorada’”. Acho que a morte é um dos temas mais recorrentes da vida – e aqui incluo a Bíblia, Shakespeare, Dante, Woody Allen, Rembrandt, Verdi... enfim, parece que todo mundo já escreveu, pintou, compôs ou deu algum pitaco sobre a morte (veja, entre outros, um filme chamado Os últimos passos de um homem). O chato é que, sobre esse assunto, todo mundo tem razão, uma vez que, da morte, a única certeza é que ela chega, mais cedo ou mais tarde (no meu caso, quanto mais tarde melhor).

Em Os mortos estão no living (acho que já disse isso em algum lugar neste blog), eu não moralizo nem trato o tema da morte como algo enigmático, porque acho a morte muito simples: num dado momento, os processos que mantêm seu corpo funcionando param e vc já era. Até onde sabemos, nenhuma outra espécie pensa sobre a finitude da existência. Nosso problema é exatamente este: tentar entender que não vamos durar para sempre e aceitar que a maioria de nós, daqui a cem anos, se tanto, estará absolutamente morta e esquecida. Nós não conseguimos, me parece, lidar com a idéia de um mundo sem a nossa presença.

[Continuo depois. São 2h50 de quinta-feira e Morfeu acaba de me dar um abraço. Impossível não aceitar.]

Quatro assassinatos (quase) sem motivos

1. Tinha um leve defeito verde no olho anil. Desanimado pelo ar frio e impassível da manha, espremeu o passo e desapareceu numa viela mal disfarçada no sem-cor da paisagem. Edifícios brotaram subitamente de uma lacuna qualquer em direção ao céu que se descortinava. Não obstante o belo espetáculo de fototropismo, ele continuou julgando o ambiente enfadonho, quando tomou o elevador. Já no apartamento, abriu a janela da sala e, observando os néons em estado de desaparecimento, enforcou-se com os fios do toca-discos.


2. O sol fugiu por uma fresta do horizonte e incendiou os cabelos da mulher parada diante da indecisão de ficar mais um pouco ou ir dormir. O homem passou por ela e deixou no ar possibilidades tardias de sexo. Seguiu-o, a madrugada ainda estava prenhe de intenções. Não falaram nada, nem era preciso. Mas, apenas entraram no quarto minúsculo de um hotelzinho da periferia, ele a matou. Em seguida, violentou-a, limpou a consciência na toalha imunda do banheiro idem, trancou a porta e nunca mais foi visto.


3. A lágrima surgiu, espessa, junto com a claridade matutina. A noite havia sido de ouvir estrelas distantes com olhos de astrônomo e de tentar contato com astronautas extra-humanos, uma fuga. Fracassara de novo, por isso, frustrado, devolveu a imaginação ao seu lugar no bolso do pijama, dando, enfim, pelo cansaço. No banheiro, mijou toda sua ruína interior na pia. Foi quando a mulher logrou libertar-se de seu sono milenar e perguntou-lhe as horas com voz e gestos de múmia. Respondeu qualquer coisa intangível ao raciocínio, enfiou a cara na privada e vomitou. A mulher levantou-se pensando com o estômago, implorou ao espelho que a recompusesse para o dia em gestação e nunca soube explicar por que foi assassinada pelo marido. Então, ele a deixou caída no tapete e voltou para o vômito interrompido.


4. Etc.

A resposta grandona para a Naiara

Meio escondida lá em “O domínio”, a Naiara escreveu: “Sou uma "fã" desse livro, já que ao lê-lo, minha imaginação foi despertada de um sono mto profundo...
É dificil, dentre os 31 contos, escolher o meu preferido. Porém, acho que o meu preferido é esse: O Domínio.Todas as vezes que estou dentro de um ônibus e vejo alguém tirando um cochilo, eu me recordo do conto e começo a lembrar de cada pedacinho do conto...e isso é um relaxamento e tanto!
Mas...ao ler esse conto, fiquei com uma dúvida na minha cabecinha... Vc termina (ou nem termina!)o conto com um "que":"ninguém acredita que"
Isso me deixou mto curiosa...e não só a mim, como a mtos amigos que tbm se fascinaram com o seu livro.
Agora me responda Marvila: O que vc qria com isso? Qual foi o seu objetivo com esse "que"?
Parabéns pela obra!”

Então... aí eu respondi um monte de coisas e o Blogger deu pau e perdi tudo. Só agora, depois de enrolar um tempão é que pude voltar aqui, pra cumprir minha promessa de dizer algo a respeito.

• • •

É o seguinte, Naiara: vc nunca se pegou caindo no sono no meio de um pensamento? Pois é: a mulher está ali, ao lado do narrador (o narrador é quem, a duras penas, tem a palavra), e ele, encantado... Até que pára de resistir a ela e se entrega, antes de completar a frase (o sono aí é, talvez, uma metáfora para certas paixões que tomam conta da gente quando a gente está mais distraído). O Drummond, num poema maravilhoso (um dos meus favoritos, aliás), “Caso pluvioso”, fala dessa mesma paixão avassaladora e incontrolável:


A chuva me irritava, até que um dia,

descobri que maria é que chovia.


A chuva era maria, e cada pingo

de maria ensopava o meu domingo.


E por aí vai. Ela aumenta de volume, chove sem parar, obrigando o poeta a criar neologismos para sintetizar o que sente (“chuvadeira Maria, chuvadonha, / chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha”) e engolfando o mundo todo. Até que, ao final, “anti-petendam cânticos”,


Os navios soçobram. Continentes

já submergem com todos os viventes,


e maria chovendo. Eis que a essa altura,

delida e fluida a humana enfibratura,


e a Terra não sofrendo tal chuvência,

comoveu-se a Divina Providência,


e Deus, piedoso e enérgico, bradou:

Não chove mais, maria! — e ela parou.


Acho que escrevi “O domínio” sob a influência dessa idéia de paixão: algo tão avassalador e indomável que sai levando tudo de roldão. Pelo menos essa me parece a paixão que vale a pena. Aquela em que a gente “mergulha de cabeça torcendo para o fundo não chegar”, como diz o Selton Mello para a Débora Fallabela, em Lisbela e o prisioneiro (parabéns pra quem viu). Parece, infelizmente, que já não se fazem paixões assim, tudo tem de ser justificado, pesado, medido, raciocinado... mas o bom é quando nos deixamos levar, não fazemos perguntas, não queremos saber por quê... O bom é quando a gente ou percebe de súbito que “maria é que chovia” ou adormece antes de saber o que estava para pensar.

Para Mary Kiedis

Lá em "Casamento", a Mary Kiedis diz: "Posso estar enganada, mas o provavel é que o vest ufes cobre uma análise geral dos contos, algo sobre o estilo de narração, etc." e fulmina: "o que você acha?"

Menina, eu achar alguma coisa não vai adiantar muito pra vc, porque vá a gente saber o que passa na cabeça da banca de Literatura do VestUfes. Uns três anos atrás, pra vc ter uma idéia, caiu um poema meu ("Químicas") no vestibular. Fizeram quatro questões com ele: três de Literatura e uma de... Química. Acertei a de Química e mais duas, hehe... Portanto, não sou fonte muito confiável nesse quesito. Mas vc diz que leu o livro. Creio que isso baste para vc dar conta de uma prova — mas espero que tenha ajudado vc a se interessar mais ainda por Literatura.

Boa sorte, moça.

PS: Mary, já ia esquecendo de dizer: vc foi a primeira pessoa que percebeu — e comentou sobre — o "clima psicodélico do livro". Eu achava que ninguém havia se tocado com isso. E é uma característica importante do livro, junto com o clima de farsa, o niilismo, a sensualidade (às vezes meio bruta), o romantismo, o realismo fantástico, o erotismo...

sábado, 13 de outubro de 2007

Aviso aos navegantes

1) O Blogger não permite editoração fora dos padrões que, por alguma razão, ele acha únicos. Assim, certos recursos literários que a gente utiliza para criar alguns "efeitos especiais", na verdade, acabam dando a impressão de que a gente é idiota. Exemplo: no sétimo parágrafo, a palavra "transparente" vai se tornando transparente, pelo desaparecimento gradual dos fonemas, até existir apenas o espaço em branco entre as vírgulas... O PageMaker e até o Word (o Word!) fazem isso com um pé nas costas. Agora vejam o que o Blogger fez. Dêem um desconto pra essa porqueira aí...

2) Eu só vou fazer comentário agora a partir de perguntas e comentários de vcs. Senão fica parecendo leitura dirigida. Se vcs não perguntarem ou comentarem nada, eu fico aqui, quieto no meu canto.

Nessa noite, o trem atrasou

Todas as noites, o trem passava, desesperado, gritando as onze horas, e eu estava à janela, pensando devagar para não acordar os fantasmas da casa. Eva, absorta e tênue, acomodava-se melhor no sofá a cada vagão, até adormecer. O matraquear constante do relógio impregnava nas paredes nuanças de senilidade, uma senilidade branca, lustrosa, como nosso pasmo cotidiano.

Quando o trem findava de passar, era meia-noite e o seu desespero, como sempre, acabava fazendo parte de nossa própria fisionomia. Então, Eva se levantava, arrastando pesadamente os sonhos, deixava que uma lágrima, talvez de desejos não satisfeitos, talvez de premonição, lhe quebrasse a inércia do rosto e ia dormir no quarto dos fantasmas, sem dizer palavra.

Fora assim desde o princípio, mas, certa noite, percebi que alguma coisa pesada iria desabar sobre nós, porque o trem atrasou. O silêncio das onze horas, onde haveria seu grito inaugural, não-soou como uma explosão. Eva mexeu-se, inquieta e lúcida, no sofá, buscando uma posição que, pela primeira vez, nunca mais encontrou. Acabou ficando mesmo na vertical, murcha, o tempo enjaulado nela rastejando, pegajoso, sobre seu corpo, enquanto a lua deixava transparecer sua lividez sem ser interrompida pelos vagões do trem.

Eu estava entregue ao meu hábito de ficar à janela, mas podia sentir que algo havia mudado. Sabia que Eva, mais que qualquer um, agora fazia parte do relógio, integrando-se ao limbo das paredes. Do mesmo modo, sem precisar vê-la, eu não precisava ouvi-los para saber que conversavam como velhos amigos, ela e os fantasmas. Eles também haviam notado a diferença ocasional do silêncio e desceram para se convencer de que, de fato, existíamos e co-habitávamos pacificamente a casa que pertencera aos seus ancestrais desde idos tão remotos que mesmo a memória infalível dos fantasmas hesitava em afirmá-los categoricamente.

Durante toda a vida, eles tinham-se abstido da sala, limitando seus movimentos ao pretérito dos quartos e do sótão, mantidos lá por sua determinação de não misturar duas épocas distintas, a deles e a nossa, a fim de que pudessem ser preservados intactos os pensamentos e as emoções peculiares de cada geração que ocupasse a casa.

Nessa noite particular, porém, não havia um tempo definido, já que o trem atrasou, e fazíamos todos parte de uma mesma era, sem delimitações. Foi assim que eles se aventuraram ao desconhecido da nossa atmosfera e, grudando suas ventosas no corpo de Eva, ofereceram-lhe compulsoriamente um outro nível de vínculo com a realidade.

As coisas conhecidas, assim, ficaram diferentes, permanecendo iguais. Em determinado instante, notei que o relógio morrera completamente, embora ressuscitasse de imediato. Foi muito rápido, esse lapso temporal, mas, na pequena fração de segundo durante a qual a vida ficou latente, Eva se levantou, os fantasmas em volta, feito crianças na hora do recreio, e sobrevoou a sala (não continuava murcha. Pelo contrário, brilhava muito e parecia feliz como nunca), até que foi se tornando transparente, tr ns ar nt , t n a n , t , , e obrigou minhas retinas a abdicar de sua presença. Eu já não me espantava com nada, como se previamente advertido desses acontecimentos inusitados (porque, nessa noite, o trem atrasou). No entanto, tomou-me uma profunda sensatez de medo. O ambiente se tornara tão sutil sem a presença de Eva que ficou difícil encontrar os objetos em seus lugares. Quase podia enxergar-se o silêncio palpitante de cada coisa. Era isso que me assustava. Eu não estava preparado para conviver sem companhia humana com fosse lá o que fosse tão gigantesco e inabalável em suas possibilidades.

Nervosamente, comecei a rabiscar a quietude com uma canção antiga, mesmo sabendo que não ia conquistar o vazio, e Eva foi reaparecendo no sofá, impávida, de novo enrugada, como se nunca tivesse saído de lá.

Se pudesse prever o instante em que ela cairia do sofá, talvez eu pudesse também ter evitado o terror que se seguiu. Mas não. Distraído, com meu assombro interior, não fui capaz de perceber a real extensão do fato de sua cabeça haver-se partido de encontro ao soalho, a não ser muito depois, quando o veneno dos escorpiões começou a circular pelo meu sangue e tudo foi ficando escuro.

Eva estava, indiferente, jogada no chão, e já não tinha lábios, nem olhar, nem nariz, porque os aracnídeos que abandonavam às dezenas seu crânio rachado haviam devorado quase toda a sua carne e ela, agora, era só ossos, exceto pelo sexo, que eles desfiavam laboriosamente, fibra por fibra, como se toda a vida tivessem sido treinados para isso, para decompor seus átomos.

Pouco depois, numa nuvem negra, eles destruíam os móveis (alguns chegavam a brigar com suas próprias imagens nos espelhos pela ocupação do mesmo espaço) e, caminhando sobre a substância da minha aflição, escalavam meu corpo e me atacavam, vorazes.

A essa altura, inerme, eu suava tanto que alguns deles escorregavam pela minha pele. Mesmo assim, não desistiam de cravar-me seus aguilhões, disputando, cada vez mais ferozes, todo centímetro, toda glândula de um mim que já nem ouvia a dor e apenas fechava os olhos e deixava me arrancarem os pedaços, me levarem sabe Deus para onde.

De repente, não havia nem a sala, nem Eva, nem medo, nem Deus, nem nada, só os escorpiões. E eu queria que acabassem rápido com aquilo. (Mais e mais escuro, o planeta só fazia compactuar com o que acontecia.)

Um escorpião, pacientemente estacionado sob o meu nariz, aguardando uma melhor oportunidade para o ataque, percebeu quando, em minha agonia, abri um olho, pronto a me julgar morto, e, presto, cravou-me seu ferrão risonho através da córnea, até atingir-me o cérebro, amalgamando-se aos meus pensamentos embaciados.

Simultaneamente a outros escorpiões que penetraram por entre minhas costelas e devoravam meu coração, tornei a ouvir o trem. Talvez fosse muito tarde, mas clamei por Ele, meu último recurso, com o que me restava de forças. Éramos, eu sabia, os dois, os desesperados. Apesar disso, ele partiu em minha auto-defesa, gritando cada vez mais alto, mais Alto, mais ALto, mais ALTo, interrompendo a . . . . . l . u . a . . . . . a epaços regulares dos vagões, e gritando tão ALTO que espantou os escorpiões, suplantou a morte e tudo foi acontecendo ao contrário. Como um filme exibido de trás para diante, eles foram retrocedendo, assustados, devolvendo o corpo de Eva, até que voltaram para a cabeça dela, e ela, à sua posição inicial no sofá. O trem terminou de passar. A normalidade vítrea de sempre.

Mas, em algum não-movimento irretorquível, o trem se atrasara, isso era consumado.


Na noite do dia que se seguiu, quando esses fatos, diluídos pela isenção com que os analisamos à distância, assemelhavam-se a não mais que um pesadelo conjunto, Eva, sem dar sequer mostras de parecer lembrar-se do que houve, aninhou-se em mim, carente de afeição e sexo, e, beijando-me avidamente, como em tempos irretornáveis sem a proteção segura da memória, tragou-me para dentro de si.

Nesse momento, o macho aprisionado em suas entranhas, a pele lubrificada pelo prazer retomado, ela permitiu-se um sorriso, que ilustrou o quarto.

Então, através dos seus dentes muito brancos, um escorpião assomou a cabeça, negro, e sorriu também.

sábado, 29 de setembro de 2007

O domínio

No ônibus, a mulher dormia, linda, ilhada, alheia às cercanias. Tinha um sono tão pesado que obrigava o veículo a se arrastar morosamente pelas ruas esburacadas. A cada solavanco, o sono dela ficava mais denso, embaçando os vidros das janelas, misturando-se às nossas respirações difíceis, atrapalhando nossos movimentos, como um anestésico. Aos poucos, a letargia era tanta que perdíamos a noção das coisas e o próprio motorista abandonou à sorte a direção do ônibus, atropelando, sem qualquer ressentimento, os pedestres distraídos e os cães vadios, subindo pelas calçadas, invadindo as lojas.

Na cadeira ao lado, eu tentava resistir ao torpor que insistia em que meu corpo não se movesse. Ela estava muito próxima de mim para eu não notar, com admiração crescente, a textura serena que lhe fugia da pele, em contraste com o sono pegajoso que emitia. Seu vestido, ventreaberto, permitia à evidência um seio límpido, belo, suave, deixando por instantes a prisão da lingerie ao ritmo compassado da respiração, isento de vícios.

Senti-me tentado a tocá-la. Com esforço, levei minha mão até sua perna e a deixei pousada ali, sem tentar qualquer outro gesto, por medo ou por cansaço, não sei. Ela escorregou a cabeça até o meu ombro e uma nuvem soporífera mais forte escapou de seus pulmões e me envolveu, mas, nesse instante, quando eu já sucumbia ao sono, o ônibus sacolejou ao derrubar um hidrante e isso foi suficiente para que eu me recompusesse, assustado.

Os demais passageiros já estavam totalmente dominados, fixos nas posições que puderam preservar para si, já que o sono ocupava todos os outros espaços enquanto aumentava de intensidade, adquirindo autonomia, de forma que, em pouco tempo, o ônibus havia parado, incapaz de transportar sem ajuda sua carga.

Minha mão, séculos depois, por vontade própria ou puro reflexo, abandonou a inércia e atreveu-se a outro movimento, aconchegando-se entre as pernas da mulher. A maciez que encontrou e a diferença de temperatura fizeram-me reagir e empurrar a cabeça dela para longe do meu ombro, juntamente com a nuvem soporífera que me sufocava. Percebendo que já não estava tão imerso quanto os outros em seu sono — e eu era o único —, pude ampliar minha ação e alcançar seu seio desprotegido. Toquei-o levemente, temendo que se desfizesse em miragem, mas ele resistiu ao meu contato e ofereceu-se mais. Deixei-me, então, seguir o caminho do corpo dela, admirando cada milímetro de pele que descobria, abrindo novas possibilidades, trilhando cada detalhe, indiferente a Morfeu, dono de todos que não eu.

Lânguida, ainda entorpecida, ela ajeita com sensualidade os cabelos dourados, espalhando um pouco da luminosidade escondida sob eles pelo ambiente pastoso, e fecha o vestido, prendendo em si minha mão pousada sobre o seio. Talvez por não ser um objeto qualquer, mas a mão que acaricia e que solda pele e pele, o que tem junto ao peito, ela concede em abrir ligeiramente os olhos, gesto bastante para esclarecer os objetos existentes e os latentes com sua luz acobreada.

O ônibus havia parado bem no centro da cidade. Por sobre a nossa dormência, distingui o barulho do trânsito e das pessoas irritadas querendo chegar mais cedo a casa. Era um fim de tarde multígrado. O sol agonizante fortalecia as perspectivas modernas dos edifícios e projetava sombras elípticas sobre o asfalto. Um motor engasgou e morreu. Um homem teve um infarto, outro deixou cair o livro de Fernando Pessoa que lia e adormeceu, encostado a uma banca de jornais. Devagar, a cidade foi parando, até que todos dormiam a sono solto onde e como podiam. Não consegui evitar um bocejo. Ao meu lado, a mulher linda, atenta às cercanias, aproveitou-se desse descuido e me possuiu de vez, com um beijo melífluo.



Os semáforos tentam inutilmente controlar o caos. Há nuvens, ninguém telefona, ninguém observa o luar incipiente, ninguém acredita que





Resposta para o Guilherme Daher, parte II

A questão do tempo em "Dies irae", creio dizer respeito ao distanciamento entre um Lázaro ingrato e um Cristo simultaneamente humano e divino (ou pretensamente divino). Lázaro portar o momento sob a axila é reflexo imediato do tempo que ele vive. É Natal. No Natal, as pessoas andam apressadas, muitas vezes com presentes debaixo do braço. O trocadilho foi inevitável: “Era Natal. Portanto enfiou o presente debaixo do braço [...]”, presente tanto representando qualquer coisa que se dá ou concede a alguém, inclusive dádivas e dons, segundo o Houaiss, quanto o instante atual. Lázaro fugiu com o tempo (o que pode ser interpretado como a reprodução ad infinitum de características desabonadoras da humanidade, tais como a ingratidão), fugiu com a única coisa de que Cristo talvez precisasse, e, quando este o encontra, ele não sabe explicar nem o que fez nem o que estava fazendo em um tempo que não era o seu. Não era? Ao longo da história, quantos Lázaros não existiram? Quem de nós pode jogar a primeira pedra?

Cristo está furioso. Na verdade, essa é uma característica das mais humanas em um Deus que se faz homem. Não apenas a substância carne de que é composto, mas o espírito humano é que o caracteriza — e engrandece. Cristo fica furioso com os vendilhões do Templo, lembram-se?, e os expulsa a chicotadas. Cristo ficaria, sim, furioso, ao reencontrar aquele a quem salvara e de quem, em vão, necessitara. A Bíblia não diz nada disso (exceto a surra nos vendilhões), mas nós podemos imaginar tudo isso. Então, podemos imaginar tb que, quando Cristo surra Lázaro até a morte (tomando, por fim, a vida que lhe devolvera), o povo imagine que ele apenas está fazendo o que qualquer um faria, punindo um infrator, restabelecendo a ordem (uma ordem) das coisas. Já não nos cansamos de achar que a polícia ou qualquer um que represente a autoridade policial, por exemplo, tem, sim, de agir com violência, de eliminar o marginal? Vingança executada, portanto, sob aplausos do povo, Cristo pode, enfim, sentir-se Deus e subir aos céus.

Ou não?


• • •


PS: O conto faz uma descrição naturalista de Cristo: sujeira, barba por fazer, piolhos, carrapatos. Parece-me muito mais justo imaginar que, em uma região de negróides, como a Galiléia, não existiria um Cristo como o pintou o imaginário medieval europeu: branco, de olhos claros, limpo etalvez cheirosinho. Cristo não era humano? Então. O lugar não tem água e, pra piorar, é tremendamente empoeirado: o deserto está ali, à porta. Na época do Império Romano, banho se tomava muito raramente: nossos modernos ideais de assepsia não eram sequer sonhados. Então, a figura de Cristo — ou a de qualquer pessoa — tem necessariamente de levar em conta o ambiente e o comportamento da época. Eu me arrepio imaginando, principalmente, o cheiro das pessoas (tenho horror a gente fedorenta). Devia ser complicado até pra transar... Talvez por isso não houvesse explosão demográfica. Tenho uma teoria: a população começou a crescer depois da invenção do banho com sabonete...

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Resposta para o Guilherme Daher, parte I

O Guilherme aí nos comentários de Dies irae, fez umas perguntas difíceis de responder de uma vez. Vamos por partes, então. Rapaz, vc vai acabar virando crítico literário. Tremendamente apropriadas, além de muito bem organizadas, suas perguntas. Fiquei meio zonzo, sendo posto assim na parede. Mas vamos lá. De antemão vc fique sabendo, como eu já preguei por aí afora, que a minha resposta é só UMA das respostas possíveis. As suas, tão verdadeiras quanto as minhas.

Isso posto, toca o comboio:

Começo pelo fim: Lázaro, no conto, não na Bíblia, que lá ele some assim que ressuscita, me parece ter-se negado a testemunhar a favor de Cristo (logo Lázaro, o ressuscitado), como o fez Pedro, que disse "não" três vezes, quando lhe perguntaram se era amigo dO Cara (e quem era besta de encarar os romanos naquela época?). Então, ele foge. Pedro fugiu, todo o mundo se escafedeu e largou Cristo pra lá. Lázaro também fugiria. Impossível saber por quê ou de quê. Medo, vergonha? Se vc leu O caçador de pipas, deve ter percebido que a gente tende a (se) afastar (d)aquilo que nos lembra nossos erros. Talvez isso tenha acontecido ao nosso Lázaro. Envergonhado por não ajudar aquele que lhe devolvera a vida, ele foge. E, pelo visto, foge para outro tempo. Através dos tempos, sempre vamos encontrar lázaros mal-agradecidos. Mas aquilo de que ele fugia (sua covardia, p. ex.) vai estar sempre com ele. Será sua tradição e maldição. É num tempo não bíblico, portanto, que seu passado, quando ele talvez já não se recordasse dele, o reencontra, na figura de Cristo. A identificação com o personagem bíblico só ocorre nos diálogos com Jesus porque talvez esse Lázaro amedrontado que depara com seus próprios receios seja uma metáfora de todos aqueles que, ao longo da vida, se escondem quando deveriam estar à vista.

Engraçado é que ninguém se pergunta que fim levou esse personagem bíblico, para mim tão enigmático e importante quanto Judas.

A questão do tempo, veremos a seguir. Parte II vem aí.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Dies irae

Era Natal. Portanto, enfiou o presente debaixo do braço e retificou o pretérito, colando-o às suas costas. Na estrutura mal-ajambrada do corpo, pesadas reticências e abismos desconhecidos, feridas que não secavam. Masturbava-se regularmente. Às vezes, sonhava. Às vezes, limitava-se a ter apenas poluções diuturnas. Tudo dependia de seu estado de humor.

Cruzou a avenida. Do outro lado, os transeuntes ficaram diferentes. Um amontoado de roupas e passos apressados, poliacrômicos.

No semáforo seguinte, voltou para o lado anterior. As calçadas apinhavam-se de mendigos e leprosos, doentes de toda espécie, à espera de um milagre. Estranhou que não visse nenhum Cristo.

De repente, percebeu que as pessoas passaram a olhá-lo, espantadas: Como ousa portar o momento sob a axila? Algumas delas quiseram apedrejá-lo, mas ele seguiu seu caminho, indiferente. Se tinha mesmo o momento, como diziam, quem haverá contra mim?

Atirou uma esmola impassível ao pedinte mais próximo e contemplou a sua boa ação do dia com indisfarçável orgulho e uma crescente sensação de poder. Deveria ter continuado a ser escoteiro. Bobagem, escoteiros não fumam.

Súbito, eis que se depara com Cristo. Recém-saído do útero do esgoto, o Mestre tinha suas longas vestes brancas muito sujas e os cabelos e a barba apinhados de carrapatos e piolhos. Fedia a quilômetros, mas, definitivamente, era o Cristo. reconheceria aquelas chagas abertas em qualquer lugar onde tornasse a vê-las.

— Com que, então, fugiste ao Tempo, Lázaro? — Jesus se recuperou da surpresa antes e falou primeiro.

— Mas este não é o Tempo, Senhor? — Lázaro retrucou.

— Por que me abandonaste, Lázaro, se sabias que eu não era homem, se sabias que eu não era tanto?

Lázaro tremeu:

— Mas, Senhor —, repetiu — este não é o mesmo Tempo?

Cristo espumava de raiva:

— Custei a encontrar-te, Lázaro, porque fugiste com o Tempo. Fugiste covardemente, deixando-me aos cães e aos centuriões. Precisei de ti e não testemunhaste por mim.

Lázaro estava apavorado, mas ainda tentou algum argumento:

— Senhor, não é minha culpa que... — e interrompeu a frase ao ver que Cristo arrebanhava o cassetete de um guarda próximo e se preparava para exercer sua autoridade.

E Cristo batia e batia e batia, munido de sua divindade borrachuda, até que Lázaro caiu, em estado de sangue, e, como tal, alastrou-se pela calçada, sujando os sapatos dos que passavam.

O povo aplaudiu. Sob a ovação, Cristo subiu aos céus, sentindo-se Deus.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Lançamento imperdível

O Reinaldo é, ora, o Reinaldo é apenas o mais criativo, interessante e original romancista em atividade neste país. Perto dele, hoje, só o Isaías Pessotti de Aqueles cães malditos de Arquelau e talvez o Veríssimo. Reinaldo discorda e nem gosta que se diga isso, mas este escriba, que, há uns 27 anos (desde o tempo do guaraná com rolha), é amigo (e já foi até personagem) dele, já adquiriu o direito — e o dever — de desobedecer. Quem for ao lançamento de A longa história (ó o convite aí ao lado — ou em cima) e, claro, ler o livro vai ter de me dar razão. Eu, de minha parte, passo antes na Flôr de Maio (assim com acento mesmo), na Praça Oito, e compro um chapéu , pra poder, mais uma vez, tirar pro Reinaldo. Gostaram da frase? Pois é. É dele...

Quem não ler A longa história vai para o inferno (Mateus, 12:26). Pelo amor de Siddhartha, o Buda, não percam...

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

E não é que...

... o troço bombou? Tinha gente saindo pelo ladrão (e ladrão, infelizmente, entrando no carro do Caê: foi laptop, foi o que tinha na mala... Caê, um brasileiro). Maioria cria do Grijó. Valeu, a presença de quem foi, pela de quem não foi. Tipo a Lili, por exemplo. Não falei que não ia?

Então. Agora é continuar louvando a iniciativa do Sesc (o projeto tem as impressões de todos os dedos da Lídia, da Beatriz, do Paulo e da Rhuana, entre os que conheço) e espalhar o boato — confirmadíssimo — de que toda segunda terça do mês tem Café Literário, no mesmo lugar, até que seja necessário alugar o estádio da Desportiva pra caber a galera. Suspeito que os próximos escritores serão o Reinaldo e o Luiz Guilherme, ambos Santos Neves a torto e a direito. O Reinaldo, lançando um fantástico livro novo, depois de Kitty aos 22. Chama-se A longa história e é longo mesmo: seiscentas e tantas páginas, de cabo a rabo. Saiu pela Bertrand Brasil e está à venda nos melhores lugares. Quem viver lerá. E o Luiz, que também dispensa apresentações, tem livro no VestUfes: O capitão do fim. Já pensaram que conversa isso vai dar? Percam por nada, menos ainda por jogo do Fluminense.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Café Literário Sesc


Aí, gente, o Sesc estréia dia 14, terça, 19h, no Centro Cultural Majestic, o "Café Literário", um projeto que visa a (gostaram da regência,"visar a"?) promover discussões literárias entre escritores. Nessa primeira edição, os escritores são o Caê Guimarães (grande poeta, quem ainda não o leu arranje um jeito de limpar essa nódoa da biografia) e — adivinhem? yeeeeessssss! — este escriba que vos fala. O mediador é o Grijó. Só pelos dois (o falso modesto aqui vai se excluir antecipadamente) já vale a ida ao Majestic. O tema desse primeiro Café Literário é Tempo da História, tempo da poesia. Bonito, né? Coisa da Aline Yasmin. Dela também, e do Quorum, é o belíssimo cartaz do evento. Vejam aí em cima.

Tá feito o convite. Quem viver verá. Ou não.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Recado para a Alice

Alice, aquela resposta que prometi para hj às 21h52 vai ter de ficar para mais tarde ou amanhã: eu me esqueci de que hj tem futebol na tevê. (É, poeta tb gosta de futebol... rs. Se bem que aquilo que a seleçãozinha do tal do Dunga joga é tudo menos futebol.)

Inté...

domingo, 24 de junho de 2007

As ninfas camaleônicas

Para Bernadette Lyra


Dormitavam ambas, indeléveis, esquecidas num tempo sem paisagens, nem rumores, nem pretensões de ocasião. Um camaleão policrômico penetrou por uma fresta mal apagada, cobiçou-as e, só então, ousou adentrar-lhes as fraldas e os momentos.


— A tua boca não é deste mundo.

O teu suor não cabe o teu ser.

O teu olhar nos fere tão fundo!

Que face é essa que vens nos mostrar?


A primeira delas, parecendo que já o esperava, interrogou-o quando ele mal levitava sobre suas ancas. A segunda, nem bem a outra terminou e já perguntava, completando a idéia que ficara no ar, feito um jogral, com estrelas onde haveria olhos belos e inquisidores:


— Que pasmo é esse que vens nos trazer?

Que espasmo é esse que vens nos roubar?

De onde é teu cheiro, teu cuspe, teu gosto,

que contas as gotas do nosso calar?


O camaleão policrômico, apanhado desprevenido, pendurou-se pelo rabo numa viga do teto e cantarolou um acalanto, evasivo. Ficou olhando à distância os seios imaculados e sutis que elas lhe proporcionavam, com a vontade de tê-los que as pessoas têm quando com saudades. Mas não podia. A paixão, não lhe era dado conceber.


Disfarçou o êxtase crescente, espantando a lua, que espiava, curiosa, pelos buracos do vazio. Porém, logo voltou a desejá-las, elas que, sem pudor, lhe ofereciam corpos e insolitez nos gestos e nas palavras.


— Que amor é esse a nos tragar o porte,

a nos fugir ao tato, a nos ferir a noite?

— Que coisa é isso a nos lamber o corpo,

a nos trazer encanto, infâmia, mel e sal?

— Surgiu ao léu, já sabe a céu, saiu à mãe?

— Terá jardins, rua calçada, escada à lua?

— Que coisa é isso a nos tomar o espaço?

— Que coisa é isso a nos roubar ao sonho?


Uma falava com a boca da outra, suplicante. Supliciante. Ele não sabia qual delas desejar mais, não conseguia apreender o sentido exato do que ouvia. E via o sexo de ambas, que falavam por si, mas um pelo da outra, movendo-se lenta e docemente, vertendo os sons em longos suspiros de prazer e imoralidade. O camaleão policrômico não podia imaginar quanto tempo ainda conseguiria manter-se pênsil e distante: cada vez mais sensuais e febris, elas se acariciavam mutuamente e o chamavam, chamavam, chamavam:


— Por que não vens, se nos tiraste à sorte?

Por que não falas, se nos roeste o nó?

Ou não nos matas, se é desaguar, a morte,

de um instante em outro, adiante, e só?


Era um jogo da verdade e o camaleão policrômico, surpreendido nele, não podia mentir, de modo que rasgou um pedaço azul-solidão de sua pele e o engoliu, para se revigorar.


A que falara antes (qual?) estendeu a mão e tocou o local descarnado. Na obscuridade em que se encontravam, sentiu alguma cosia áspera, como uma casca de ferida, mas não retirou a mão. Ao contrário, trouxe a da companheira até a sua e implorou, ao mesmo tempo que se incorporavam uma à outra, em meio ao mar de lençóis, sangue, nácar e suor que se formou:


— Tira-me a pele, o meu jejum me dói.

Tira-me a vida, a lida, a ferro e dor.

Leva-nos longe, ao barro que constrói

a tua força e o teu ficar sem som.


Vencido, o camaleão policrômico desistiu do que viera fazer, sorriu, condescendente, de si mesmo e absorveu todas as luzes.


E instaurou-se a Escuridão.

Comentários

Só pra pôr um pouco de ordem aqui: a partir de 6 de agosto (aí, moçada que gosta de escrever datas e horários com um O - zero - na frente: isso não existe não, tá? Melhor escrever assim: 6 de agosto, 8 de maio, 7h32... e não 08 de maio, 07h32)... Então. A partir de 6 de agosto, começarei a postar comentários aos contos já publicados. E tentarei publicar os contos semanalmente. Percam o medo, entrem no link de comentários aí embaixo (ele está aí para ser usado, não para enfeitar o blog) e façam sugestões, digam o que pensam, falem de suas dúvidas. Na medida do possível, vou tentar esclarecer, assim sem o objeto direto mesmo, só de sacanagem com os gramáticos. Mas lembrem-se: apesar de o papa (coitado!) bater-se contra o que chama de "ditadura do relativismo", não existem verdades absolutas. Toda verdade é relativa e depende dos olhos de quem vê.

Inté...

sábado, 16 de junho de 2007

Parênteses para assunto mais sério que literatura no VestUfes

Nós não precisamos de religião. Precisamos é de Ética.
— Dalai Lama


Gente, um senador (Marcelo Crivella) está quase aprovando um projeto no senado (aquela casa de santos) que permitirá à igrejas fazer uso dos (parcos) recursos da Lei Rouanet de incentivo à cultura para promover reformas em templos religiosos. O sujeito é "bispo" da igreja universal, a quadrilha liderada por Edir Macedo. Imaginem que legal para eles botarem a mão, sem esforço e sem risco de a Polícia Federal chegar junto, em um naco do quase um bi de reais disponível na Lei Rouanet para promover a cultura no Brasil. A lei, por meio de renúncia fiscal, destina-se à produção de filmes, livros, peças de teatro, circo, literatura, dança, música... enfim, da cultura brasileira em suas diversas manifestações. Já pensaram como os pastores estão assanhados com a possibilidade de parte dessa grana toda ir parar em seus bolsos?

E tem mais: as igrejas já são (caiam da cadeira os que não sabem disso) isentas de todo tipo de impostos, enquanto nós que ralamos diariamente deixamos, também diariamente, quer desejemos ou não, quatro doze avos de nosso trabalho nas mãos dessa corja de políticos, juízes e empresários corruptos que assola o país. Vcs sabiam que as igrejas não prestam contas da "mixaria" dos dízimos a ninguém? Vcs sabiam que o Salesiano, o Americano, o Sacré-Coeur e uma penca de outras escolas que cobram fortunas de seus alunos são isentas de impostos por, supostamente, serem entidades religiosas? Se pelo menos o cursinho ou a faculdade lá fosse gratuito ou não custasse os olhos da cara, né?... Pois é, se não bastasse isso, agora vem esse senador cretino (desculpem o pleonasmo vicioso) aí e quer tirar da gente mais dinheiro ainda pra favorecer seus cupinchas e suas malfeitorias. Assim não vale. Se valer, e se Deus é comércio,vou abrir uma igreja também...

Então. Aí um grupo de pessoas inconformadas com a sacanagem toda bolou um abaixo-assinado que está circulando na Rede. Assinem também e divulguem pra todo o mundo que vcs conhecem. O link é o seguinte:

Não à Lei Rouanet para "templos religiosos"

Estou cada vez mais indignado. Vamos parar de ser passivos. Tá na hora de usarmos esse potencial de comunicação todo que está em nossas mãos para mudar o Brasil. Chega de passividade! Ou a gente acaba com os vermes ou os vermes acabam com o país.

Fechem os parênteses.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Casamento


Para Tânia R.



A noiva quer espaço para si, para seu próprio ato. Não o átrio desta igreja, o pároco, os convivas. A noiva quer o amante, não o noivo. Quer sorver de novo o mel dos lábios dele e o calor de sua pele e o seu olhar lascivo, compassado. Deseja a música das mãos que ainda — entre — têm seus seios recentes. Quer de volta a magia, não o bolor; a descoberta, não a passividade; a delícia, não o horror.

Entrementes, ouve-se um martelar de Mendelssohn e sinos. Selam seu destino. Triste sina: não é um véu, mas mortalha, que a cabisbaixa carrega, presa. Não é um padre: é um juiz, quem lhe cospe ladainhamente seus pecados, pelos quais a curva longa e duradoura que ela imaginou para longe deste tribunal não lhe será permitida, a fuga. Assim também sabe-se do ouro desses que o noivo tira grilhões do bolso e que o juiz abençoa, em nome do carrasco e do filho, amém, que, à sua direita, lhe dilata o medo.

Teima a noiva, inquieta, em relembrar o amante. Teima em ter no corpo, entranhado, imediato, o cheiro dele e a paciência e a calma dele, coisas tornadas lugares onde seus mais intrínsecos desejos foram expostos e satisfeitos (é claro, o noivo — o turvo — saberá disso quando for executar a sentença — porque há uma sentença, como houve um crime e haverá uma execução).

Pensa ela, posto que desarmada, abrir o vestido e mostrar no peito, à platéia, as marcas do outro, o original: os beijos, carícias, rastros de sensual serpente impressos em cor indecifrável sobre a carne onde houve espaço e onde o aço das unhas sulcou sua pele e a mapeou e ela foi possessão e território dele e não houve quem mais a invadisse. Teima esta noiva bela e delicada em freqüentar outra fantasia, em rolar de novo, abraçada no seu homem, entre lençóis de cetim, com acompanhamento de grilos e lua e Debussy. Teima em não estar aqui.

O noivo, esse teima-lhe a mão. O juiz pergunta algo, Deseja por sua livre e espontânea vontade esta punição, que ela responde laconicamente, responde, indiferente, para sim. Está no fim o rito com que amortalham seus últimos resquícios de esperança. Poderia aspirar a outra coisa senão a este castigo?

Um dos convidados tem uma lágrima pronta para jorrar assim que houver oportunidade de aparecer nas fotografias. A mãe do noivo mal disfarça sua excitação crescente, feito se o filho, ao possuir daqui a pouco a noiva, pudesse vingá-la, mãe, de humilhação semelhante que não pôde ser perdida entre os objetos amontoados nos porões da memória. Uma criança, com ar anjo, leva flores de um lado da igreja e a outro, imorrediça. Seria um enterro? A noiva sente-se como. Quase pode sentir os pés flutuando no caixão acolchoado e o cheiro a formol e o algodão no nariz.

Mas então, consumada a cerimônia e conhecido o veredicto, ela vê o amante. No meio do povo, ele se levanta, silencioso, e esse silêncio é triste. Ele sorri, e seu riso é reticente. Ela não se contém e chora. Pensam que é a emoção do casamento, não a desolação. Ela sofre todos os cumprimentos calada.

De súbito, porém, o amante não se consola e rasga o ar com sua adaga de voz, beduíno que interrompe o deserto, e a chama. Acesa, ela atira para trás a aliança e, dando a mão ao amado, dá-se por inteiro sua ressurreição: e canta e dança, levita no ar, de tal forma e tanto que compreendemos o milagre ocorrido e atiramos neles os castiçais e as estátuas, os altares e os santos, os tapetes, os bancos, os paralelepípedos da rua, para que não fixassem pedra sobre pedra — e sobre esse fato edificaremos a nossa farsa.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

E o blog, hein?

A Isabela começou, a Josely deu um empurrão o agora campeão brasileiro (Nenseeeee!) Lucas entrou na onda. Então: o blog de poesia tá no ar. Meio que em construção ainda, mas tá lá o esqueleto dele. Vejam em http://marvilla-poesia.blogspot.com. Agora é com vcs. Pra vcs. E esta semana cuido deste aqui, tadinho, entregue às moscas, que nem a defesa do Flamengo diante do Figueirense...

segunda-feira, 7 de maio de 2007

O vampiro, Deborah

A tempestade anunciou o vampiro. Ele ficou parado na porta, molhado até a alma, compondo com o batente um quadro surrealista sobre um fundo escuro e chuvoso. Deborah interrompeu a respiração no terceiro parágrafo de Zaratustra, sem coragem de olhar para ele, com medo de resistir mais do que devia.

Quando finalmente voltou a respirar e o olhou, muito tempo depois, não se assustou, nem lhe disse que entrasse.

O vampiro estava recortado contra nuvens pesadas que desabavam violentamente sobre o jardim, esmagando as violetas que ela plantara no último domingo (melhor dia para plantar violetas), e contra um vento forte que deslocava as cortinas e desequilibrava uma reprodução do auto-retrato de Van Gogh de cima da lareira. Ele ficou ainda minutos que não terminavam impassível na porta, dominando a situação com sua figura esguia e altiva, olhos profundos. Essa não era como das outras noites, nem era como das outras vítimas. Estava especialmente denso, investido em sua melhor aura de fascínio e horror. Queria impressionar. Não saíra de casa sem rever todos os detalhes: os vincos das calças, os sapatos alemães, as meias Lupo, as abotoaduras de ouro. Previra tudo, até o tempo gasto escovando os dentes.

Por fim, o vampiro se decidiu a entrar e falou alguma coisa em romeno antes de trancar a porta. Deborah: respondeu em voz baixa, consentindo. Ele: aproximou-se e tocou-lhe o seio esquerdo, como dono. Ela: retirou a mão dele de sobre o seio e perguntou:

— Por que demorou tanto a vir?

— Não me demorei — foi a resposta. — É que você me esperou todas as noites ao seu lado e o que vai pelo coração de quem espera é muito longo, tortuoso. Sente cansaço, aquele que aguarda o instante da posse, formula hipóteses as mais várias e descabidas. “Eis, então, que desistiu”, concluiu apressadamente. “Aqui jaz alguém imediato”, dirá sua lápide.

[Parece poesia? É poesia.]

— Trago ainda no corpo as marcas doloridas de não ter desistido eu — disse Deborah. — Foram horas muito longas, até perceber os seus passos no jardim.

— E era apenas o tempo suficiente, que eu também esperei, para você se compor e se colar, mosaica, até estar completa e preparada para mim. Agora que está pronta, eis-me aqui. Venho buscar o que é meu.

Ela sabia que ele estava certo. Durante toda a sua vida estivera pronta para este instante de sedução.

Completou o cenário: Mozart, Liebfraumilch, que a hora é alegre, embora cada qual deva cumprir um destino — e isso não é mera fatalidade.

Uma borboleta atravessou o set e fez um pouso azul na borda de um copo de cristal. Ruído de chuva na vidraça e penumbra, interrompida apenas, vez ou outra, pela alvura mágica da pele, o roçar da seda na perna — ela se veste para o amor.

O vampiro, esse fique onde está, não entre ainda, que aqui só cabe a forma bela e sensual da amada. Não invada, o amante, esta fantasia, não interrompa este instante irrepetível. Ela não quer que nada se precipite. Investe-se de sonhos. Vai ser preciso descobri-la mansamente, desfolhá-la, roubar-lhe significado após significado, encontrá-la sob a metáfora, até que ela se entregue, quando quiser, inteira e límpida. É muita emoção para uma só paciência, é o que ela é.

Ele ouve cada coisa em seu silêncio. [O coração inaudível dos objetos bate seu ritmo múltiplo, persistente.] Está ansioso. Bastaria que algo se movesse e o mundo deixaria sua rota, mas nada se move, exceto o sangue dele (insuficiente para alterar o caminho do planeta), que circula mais rápido e acaba por se perder de suas vias naturais, fugindo das veias e artérias, acumulando-se desordenadamente em suas pernas, de forma que, quando Deborah o chama, ele está preso ao chão, sem conseguir andar, e mais pálido que nunca. Agora ela está difusa, menos mulher que fantasma. Pronuncia o nome dele com som serpente. Quase caminha, mais paira, acima da gravidade do momento e da lei.

Ela está frágil, ali, ao alcance do vampiro, dos dentes dele, sedentos, a seda branca alcançando seu braço, feito pele que, desgarrada, voltasse ao dono original.

Ele: vai dizer algo em magiar. Mas: ela o impede, decidida. Passam um tempo incalculável admirando-se mutuamente, um, pesado e imortal; outra, provocante e alada, deixando-se sugerir. Não faltará ânsia para que, dentro em breve, o beijo. Não faltará silêncio para que, entretantos, o mistério.

— Podia ter vindo antes — ela falou semidistraída, enquando ajeitava-lhe uma mecha de cabelos que teimava em cair sobre o olho esquerdo.

Ele se desvencilhou da mão dela:

— Você ainda não estava preparada. Mas eu não vir não significa que eu não estivesse aqui.

— Terá sido sua então a boca que senti sobre os seios e suas as mãos que me desnudaram e seus os caninos que me romperam a jugular, nas noites em que eu me julgava só?

— Sim, era eu, o que você imaginou para suprir minha ausência ignorada, sem saber que, em mim, doía-me tanto minha própria ausência que precisei te resgatar em minha vida insípida e sem sentido.

— Ah, e quanta doçura havia em suas mãos e lábios em meus sonhos! Trouxe-a com você?

Enquanto falava, uma lágrima escapou ao seu controle e, após percorrer um abismo vertical, estilhaçou-se no chão, em mil diamantes minúsculos. Ele faz um segundo movimento, andante molto. Sua mão mergulha nos cabelos dela, vaga pelo ombro, ficará eterna nesse ir e vir, fluida, na maciez da pele.

Quando voltou a falar, a voz era calma e triste:

— Trago comigo é uma dor inexprimível e sem remédio, o ter que vagar eternamente, sem consolo, por entre seres que apenas me aceitam, não me conhecem. Se fui doce com você, é porque te inventei para poder suportar esse vazio inesgotável que tenho em mim através dos séculos, e quero agora acreditar na sua real existência. Você não é mais um sonho. Não sou mais um sonho. Estou aqui. Ainda respiro, fumo, bebo, durmo... não sei bem pra quê, mas não importa. Sei que te amo, criatura minha, da mais sincera maneira de amar. Só que a mágoa mais profunda em mim persiste, inacessível a pais, irmãos, ou companheiras de leito e vida breve. A lívida face do absurdo roça a minha, com vagar. Que há de ser feito dessa dor em meio ao nada?

— Não há o que possa, amado, nos redimir desse imenso destino de estarmos vivos sem saber por quê. Por isso te acolho em mim e te protejo. Que sejas sempre essa mistura de humano e divino que és, meu homodeo de negros cabelos e voz de profundeza. E que possas me aguardar sempre em alguma região de ti, através de céus escuros e solidão e lágrimas e ranger de dentes.

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Tarde como nunca. As coisas sempre. Lábio a lábio, eles se recompõem mulher e homem, indistintos. Em alguma parte, contra um cenário de García Lorca, alguém lê a Espanha. O acaso da luz que vem da lareira detona veias vermelhas na casa e cada poro das paredes, enfim, verte seu sangue contido, ex. De noites como assim não fogem gritos aos assassinados, nem se encomendam preces aos defuntos antigos, nem apodrecem frutos recém-colhidos, nem flui o trânsito, nem sequer a vida segue seu curso, nem. Noite sem jamais, o que resta para acontecer é o silêncio.