quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A terceira realidade

I

Uma corrente de ar frio penetrou pela fresta da porta. Ela interrompeu momentaneamente o sonho agitado, encolheu com sensualidade as pernas e puxou as cobertas para a cabeça. Restos de uma sonata de Händel e de alguns improvisos de Schubert permanecem pelo espaço, emaranhados ao odor de jasmins e à respiração dela em ré menor, opus 125, para cravo e violinos. Materializados na atmosfera, corpos suados, de um passado ainda quente, teimam em não se perder na distância da memória. Um gato barítono, em tom degradée, era para sempre no cesto de revistas, aquecido entre as coxas belas das mulheres também que as povoavam, ilustrando-se de erotismo e beleza.

Parcialmente misturada à realidade, ela pensou como seria bom se chovesse e tornou a adormecer completamente. Pois choveu. Uma chuva brava, violenta, que, em sua ferocidade, arrastava casas, arrasava bairros inteiros, carregava pontes, ruas e avenidas, tornando de água o mundo todo.

As coisas emboloravam, mas ela vicejava em seu ambiente bucólico, os corpos oleosos de suor: ela, valsas, e ela, as mãos sempre buscando mais o que acariciar, famintas. Abraçavam-se, sorviam-se, mel na boca, o corpo retesado, ela ali, ela, enfim, os olhos e sua luz aluada, a outra ficava azul e já não eram distintas uma e outra, Schubert ao fundo, sustenido, suspensas as duas no ar, até que é hora de perder a qualidade de pluma, de descer pela escada de jasmins, de retornar ao chão.

Ei-lo, então, o velho planeta e seus objetos molhados. Tocou-se, desperta, a ver de onde provinha toda a umidade em volta. Redescobriu a suavidade da pele. Abandonou-se, lasciva, ao próprio toque, excitada. Os seios arfavam. Não era ela em si se tocando, mas a outra, a que se fora. A que — ainda — estava.

Os seios, homenagem de algum deus à estética, insistiam em seu descontrole. De súbito, ela se ergueu por alguns segundos, sustentada por gestos invisíveis, arqueou o corpo e, depois, deixou-se ficar, após um gemido mais prolongado, sobre o cetim das almofadas.

O gato listrado também se movera de seu cesto de revistas. Por entre as samambaias, avistou-a, arfante, envolvida em sua dupla realidade, alheia a uma terceira, a que chovia e respingava, pela janela aberta, o tapete branco. A terceira realidade está se alastrando para dentro da casa, pensou o gato, acomodando-se perto da lareira. Ao mesmo tempo, gostaria de saber a quem creditar todo o líquido que invadia seu antes morno ambiente, se aos pesados cúmulos-nimbos, que escondiam com seus cristais de gelo o céu conhecido, ou se àquela mulher acetinada que parecia não se satisfazer com as mãos continuarem os braços, porque as experimentava em todas as partes vistas e não vistas do corpo, despreocupada em conter o rio viscoso que nascia em si.

Quando, por fim, ela retornou de vez à cama e às almofadas, deu-se conta de como ficara estranho tudo. As coisas que entrevira em seu delírio apenas úmidas estavam na verdade encharcadas. Não as reconhecia agora, que eram como antes que ela as observasse de outro ângulo. Os objetos amorfos, fantasmas sem cheiro nem cor, que compunham suas sensações, de novo eram só restos e uniformes entregues aos seus limites, repletos de suas coerências, já que ela voltara. Não conseguia apreender o sentido de mudarem assim, radicalmente, abdicando de seu lirismo e de suas liberdades, resignando-se, passivas, ao tato e à forma. Qualquer hora dessas precisava ausentar-se novamente, romper a casca desse mundo plausível em que nada se permite além do previsto e do usual.

Mas não. Não seria possível fugir outra vez: havia muito que elidir, muito que transpor, e ela já não tinha forças suficientes para isso, tanto se desgastara nessa última fuga. É preciso um tempo para permanecer, para também acomodar-se, e é agora.

Diante dessa constatação, uma lágrima brilhante, límpida, abandonou seu esconderijo e percorreu em silêncio um caminho sinuoso, torto, pelo rosto dela até despencar sobre a alvura plácida do seio. Ela sentiu o contato cálido da lágrima no peito, mas não fez gesto algum. Apenas chorou mais, de dor, de impotência, e as lágrimas irmanaram-se à chuva, apagando a lareira, inundando por completo o lugar. Tudo se liquefazia rapidamente. O quarto, recém-nascido oceano, era impossível de não ser visto como tal.

O gato acordou bruscamente, assustado, semi-afogado, sob a água. Em seu desespero, emergiu junto a uma sinfonia de Haydn, que boiava como podia, misturando claves e bemóis, breves e semibreves, esbarrando em garrafas de vinho húngaro, agarrando-se a peças de roupa, que, imediatamente, afundavam e não voltavam à superfície.


II

Longe dali, outra mulher, tão bela quanto serena, descobriu-se só. Nada com que se ocupasse preenchia o vazio que a possuíra desde que, por medo, desistira de se emocionar. Agora, sentia falta da luz azulada que as envolvia quando se encontravam, da boca molhada, sedenta, do gosto particular de cada uma, do seu cheiro entranhado nela, que, no entanto, era de ambas, ilhadas em seus prazeres, ignoradas as imediações.

E esta hora, furtando-se a passar. Mas é necessário um pouco de fel. É preciso que sofram para que o seu amar-se seja mais que uma simples soma de duas. Pena que não possa ser evitado o vácuo que se formou, esse imenso vazio sem cor que a esmaga e que não imaginava tão pesado, este fardo.

Pela vidraça, a chuva lava o mundo. A janela emoldura a paisagem na parede. A enxurrada carrega sentimentos distantes e os mistura ao barro que desce das montanhas e às folhas que caem das árvores. A solidão se tornou tátil, palpável, e suas mãos a tocam, buscando suprir-se de companhia, completar o puzzle de si.

Passou dias à janela, imersa metade em si, metade no vazio. Quando, ao seu lado preenchido — o que doía pela ausência do outro — um pássaro trinou toda a “An der Schönen, Blauen Donau”, regido por Karajan, saudando o sol que ressurgia, o mundo ainda estava úmido. Então, ela ajeitou os cabelos, preparando-se para continuar sua permanência, olhou-se no espelho, e não se viu, não se viu inteira. Faltavam-lhe partes: era apenas meio-rosto, meio-riso, meio-olhar. Como as pessoas reagiriam, abraçando metade corpo, metade falta? Como se faria entender, usando meias-palavras? Não. Também é necessário retroceder, mudar de idéia. Não poderia gastar o seu tempo inutilmente, dormir abraçada ao travesseiro inanimado, rude (quando seu corpo pede mãos, pele, movimento), só por determinismo, porque assim tem de ser. E se, além disso, ela fosse se gastando mais e mais até que desaparecesse por completo? Perderia, então, qualquer outra chance que pudesse ter, pois não há novas oportunidades para os condenados à solidão. Foi pensando assim que calçou as sandálias, perfumou-se, saiu, trancou a porta e jogou a chave fora — não ia voltar.


III

Caminhava nua, mas ninguém reparava nela, não totalmente.

À medida que se aproximava de seu destino, uma sensação de angústia e excitação ia tomando conta dela. As coisas em volta, desfocadas, tomavam a forma que ela sabia tão bem. O mundo usual deixava de haver.

Quando chegou, a casa estava fechada. Olhou pelos vãos da persiana e, pela primeira vez, não reconheceu o que não-via. O lodo esverdeara as paredes e mofara as cortinas. A um canto, desalinhada, imóvel, deixando entrever os seios insatisfeitos através das tramas da lingerie, ela vislumbrou a outra. O corpo muito branco ainda tinha as suas mãos impressas por toda parte, seus lábios ainda estavam marcados em carmim sobre a alvura da pele. Ficara eternizado na outra o que já (não) era seu.

Então, ela forçou a porta até conseguir entrar. Mesmo ferindo as mãos, perfurou o silêncio quase intransponível do interior, que, vez em quando, desabava sobre ela. Algum tempo depois, cansada e ofegante, envolvia nos braços a amada, afastando-lhe as rêmoras e as algas, limpando-lhe o rosto, penteando-lhe os cabelos. E foi assim — beijando-a calorosamente — que se iludiu com que ela fosse levantar-se e falar de amor, como antes. Mas ela não se levantou e não falou de nada. Permaneceu fria, estática, sem armas.

Nesse instante, tudo perdeu o que ainda tinha de voz.


IV

Uma sonata de Beethoven desprendeu-se do teto, escorreu mansamente pela parede e, escavando o silêncio, tingiu-as de luz.


3 comentários:

Unknown disse...

Ei Miguel, Antes de tudo quero agradecer mais uma vez pelo livro, e dizer que é um prazer ler esses contos tão indescritíveis...
Já estou na página 93, é difíciu parar de ler. De todos os autores que vieram aqui na FUNCAB, digo sem ipocrisia nenhuma, o q mais me cativou foi você.
Gosto muito do jeito que vc descreve as coisas, faz parecer tudo tão bom de viver...
Bem quando eu terminar de ler o livro, darei minha senteça final...
Vou ebora deixando um beijo e um pedacinho lindo de seu livro:
Qualquer hora dessas precisava ausentar-se novamente, romper a casca desse mundo plausível em que nada se permite além do previsto e do usual.

Miguel Marvilla disse...

Josi, fiquei muito feliz em ter estado com vcs lá na Funcab. Foi a melhor turma para quem já falei. Leram o livro, pareciam interessados, colocaram muitas idéias em circulação. Se deixassem, eu teria virado a noite. Pena que havia o horário, os ônibus para Pancas, o sono. Mas foi realmente um grande prazer. Isso é o de que mais gosto no que faço. Principalmente conhecer pessoas para quem palavras entre aspas são inventadas.

Se quiser, escreva para o meu-email. Fica mais fácil para responder.

E obrigado pelas suas palavras carinhosas sobre o meu livro.

Beijo, moça.

Miguel Marvilla disse...

PS: E será, Josi, que tudo não é mesmo "bom de viver", como vc diz? Basta que a gente tenha coragem, na maior parte das vezes...