sexta-feira, 14 de março de 2008

Luz e sombra

Para Simone

Quando os olhos se enchem de um excesso de beleza, fechá-los é voluptuosidade. • Victor Hugo


Uma réstia de sombra penetrou por uma fresta da janela e exprimiu um protesto mudo contra a claridade do lugar. A um canto, em desalinho, o corpo da mulher exibia uma luz muito forte e pegajosa que, divulgada pelas paredes e espelhos, contagiava os objetos.

Algo imperceptível empurrou o mundo para outro minuto. As coisas envelheciam.

Um movimento mais brusco do sonho e eis que a mulher retoma o momento. Abre ligeiramente os olhos e — mistério impregnando o ambiente — os elementos se curvam diante da Beleza.

Subitamente, uma lágrima se desenrolou dos olhos dela. Aproveitando-se desse descuido, a réstia de sombra refletiu-se numa quina da parede, espalhando-se pelos rodapés. Uma flor e uma garrafa de vinho semivazia que brilhavam muito perceberam-lhe a intenção e tentaram impedi-la de prosseguir, mas, frágeis seres de matéria, foram logo absorvidas.

A mulher está feliz. Ei-la que ama e a quem amam. Havia muito que se destinara à emoção, e tanto que terminara por apossar-se da Luz. Assim é que, quando ama, brilha e se emite — ela, a claridade; a cor; o dia. (É nesses momentos que o seu braço pode abdicar do átomo e permanecer apenas gesto.)

Algum móvel, uma jóia e uma pequena peça de roupa tornaram-se, sem uma segunda chance, noturnos, como o avançar da sombra.

Nua sob os lençóis, ela se ocupa, de novo, em sonhar. Macia, esgueira-se, suave e mansa, onde a fantasia. O nácar de sua pele é a própria essência das coisas. O mundo plausível e presumível logo se desfaz e ela está inerente à plenitude.

Eis aqui a Lei: o mundo só é porque é luz e sombra. Há que se combaterem.

Um desenho a grafite, uma aliança de ouro, um poema e até pedaços perfumados de ar já haviam sido englobados pela sombra em sua fome de amplidão.

Ainda sob os lençóis, emaranhada em seu torpor, a mulher se move alguns centímetros e deixa a descoberto um seio plácido, provido de vida própria, que se encanta em acompanhar seu ritmo respiratório, subindo e descendo lentamente, dotando de sensualidade o todo ao seu redor.

A sombra estacou por alguns instantes. Havia que render-se, posto que momentaneamente, ao belo.

Nisso, porém, a mulher, munida então sua maior luminosidade, percebeu a falta dos objetos que a envolviam. Rolando sobre si mesma, abandonou os lençóis e deu-se conta de estar rodeada de sombras. Preocupou-a, entretanto, somente o amado, chegando e achando a casa às escuras. Poderia entender o que aconteceu? Saberia encontrá-la? Conseguiria ultrapassar a sombra — ele, tão frágil e desarmado, despido de sua luz?

Pensando assim, ela esforçou-se por ampliar-se e recuperou a flor e o poema. Nessa hora, porém, o ar, carregado de sem-cor e não suportando mais o peso da própria culpa, terminou de desabar..


O amado está à porta. Uma força de dentro para fora o impede de abri-la. Ele insiste. É quando a força de dentro de faz maior e, levando-o de roldão, a noite jorra sobre o mundo.

No interior do escuro, duas manchas luminosas resistem a ser possuídas, mas são a única luz do universo.

terça-feira, 4 de março de 2008

Cada um por si

FOI ASSIM: anoiteceu exatamente quando ela, no sinal fechado, percebeu que o motorista do carro ao lado, distraído, mordia levemente o lábio inferior. Induzido por essa visão, o coração dela pulou uma batida. Foi nessa mudança involuntária de ritmo que o outro motorista reparou quando o sinal abriu.

Tornaram-se cúmplices, num acordo feito de avenidas e olhares, enquanto atravessavam a cidade, até uma delicatessen. Ele pediu uma Coca-Cola e ela, um tímido sorvete de creme com crocante. [No jogo de sedução que se seguiu, não foi possível definir quem era assaltante, quem era vítima; quem era conquistador, quem, conquistado.]

Depois, alguém abriu uma porta e deixou que Marisa Monte se materializasse de algum lugar ao fundo e oferecesse a ela o mote para fugir:


Eu não sou da sua rua,

Eu não sou o seu vizinho.

Estou aqui de passagem.

Este mundo não é meu,

Este mundo não é seu.


Mas ela não fugiu e, em resposta, quase rasgou com um pensamento qualquer o silêncio caudaloso que, então, se abateu sobre eles, sem saber que pensavam ambos as mesmas coisas, simultaneamente.

E saíram juntos, abraçados com força, não era porque fosse a primeira hora deles juntos que se furtariam à libido. Muito pelo contrário. Estou aqui de passagem.


É ASSIM: ele subtrai à pele dela a camiseta de algodão e, bolívar, liberta os seios arfantes de sua inexpugnável prisão de lingerie. Ela, serpêntica, enrosca-se nas coxas dele e o surpreende com quantas mãos inventa para tocá-lo. Ele, mal esteve aqui, em beijos abrasivos na planície dos ombros e da nuca, preparando o que haverá em pouco, e já reaparece em outro lugar, desbravando vertigens e regiões que ela ignorava desconhecer na própria anatomia.

Mas. Porque o ar vai ficando irrespirável de tanto uso, é necessário que se abram sem interrupções cortinas portas janelas e, assim, separada do outro, ela retorna rapidamente à consciência e se recompõe. “Não foi para isso que vim”, pensa, sem muita convicção. Este mundo não é meu.

Recortado, nu, contra um néon intermitente, ele também se recupera da presença dela e está mais calmo quando ela torna a aninhar-se em seus braços, sublinhando cada gesto com um olhar muito muito azul. “Pena”, pensam tristemente, hipnotizados.

Os lábios dele beijam de leve o lobo da orelha dela e descem suavemente, sem pressa, até o pescoço delicado que lhes é oferecido. No espaço agora virtual entre os dois, o desejo acumulado de tempos em que ainda não se conheciam forma uma película oleosa, sobre a qual deslizam sons, gostos, cheiros, formas. “Pena mesmo”, repetem, cada um por si.


ANTES QUE um corte brusco de energia elétrica deixe o quarteirão inteiro às escuras, o néon ainda brilha tempo suficiente para ilustrar a surpresa de ambos quando os caninos afiados de um penetram furiosamente a jugular desprevenida do outro, em busca de alimento.


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A ilustração lá em cima, "O beijo", pra quem não sabe, foi pintada em óleo sobre tela, entre 1907 e 1908, por Gustav Klimt, um pintor austríaco. Se um dia perguntarem a vcs no Faustão, digam que, junto com Rembrandt (esse vcs vão perguntar ao oráculo quem é, se não souberem), é o meu favorito. Aqui há uma centena de quadros do cara e uma penca de informações preciosas, ainda que básicas, mas... em inglês, sorry.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Janela

O corpo era muito longe. Tudo que podia fazer estava em fomentar-lhe ânsias de não estar preso.

Zoom, aproximou a janela: um pássaro tentou um looping e, desarvorado, desabou o mundo de cabeça para baixo.

O âmbito carregou-se de um cheiro fétido, no silêncio que se seguiu. Ela decidiu que era chegada a hora da liberdade.

Diante do espelho do armário embutido, calçou as luvas de lã e disfarçou-se com uma alma nova, que havia guardado especialmente para uma ocasião como esta. Tanto tempo enclausurada e, no entanto — admirou-se —, nenhum cupim, nenhum roído, nada de memória.

Saiu de casa pensando animosamente nas coisas que a reencontrariam. Sorriria, caso a reconhecessem.

“Não”, disse para si mesma. “É cedo ainda. Sendo assim, devem estar todos dormindo.”

Enganou-se, como durante sempre. No instante em que pisou a rua, re-parou na chuva. Amedrontada, voltou sobre seus próprios passos, para não se perder/denunciar, fechou a porta e esqueceu-se em definitivo de onde pôs a chave. Não queria mais sair. Queria raiz.

O cheio fétido era de um enterro e persistia incrustado no ambiente.

Súbito, feito uma evidência de traição, um raio de sol varou as copas dos edifícios em frente e sublinhou-lhe no olhar um rasgo de serena idade. Ela continou, ainda assim, radicada em seu canto, à espera de algo que a co/movesse, até que a tarde, abdicando da luz, abortou uma noite gélida, quase tátil, que permaneceu boiando no ar com sua lua e uma prole numerosa de estrelas.

Ela se levantou, enfastiada, e tomou banho. Esfregou-se com força, buscando arrancar da pele o cheiro do dia, até agora presente. Estarrecida com a resistência que encontrou, deixou-se ficar na banheira, enquanto a alma nova, esta sim, fina e emancipada, fugia pelo ralo.

Quando se deu conta de que precisaria de outra alma, ainda sentia o Cheiro, mais forte. Impotente, enxugou-se com pressa e correu, nua, para a cama. O Cheiro a perseguiu. Trancou portas e janelas esperando detê-lo, mas ele já estava em todos os lugares, múltiplo e insistente.

Uma mosca, em vôo cego, riscou na atmosfera arabescos incompreensíveis.

O enterro passou dentro do quarto, as pessoas usando suas máscaras de não-caras e seus espíritos fúnebres.

Ela não se mexeu de seu lugar, enquanto se desenrolavam lágrimas de desespero dos não-olhos das carpideiras. Depois, caminhou até a janela, tornando a abri-la. A noite entrou numa lufada. Ela livrou-se da pele e, ignorando o cheiro que se desprendeu, arremessou-se para fora, tentando um looping.

sábado, 1 de março de 2008

Casamento

Para Priscila, sempre


1.

Aceitas para os teus olhares

as impurezas deste homem

e, para o teu corpo,

as cicatrizes que ele traz?


Aceitas para os teus sonhos

a aspereza deste homem

e, para as tuas boas lembranças,

as dores que ele provoca?


Aceitas para os teus dias

os ruídos deste homem

e, para as tuas noites vazias,

os gritos que ele te arranca?


Aceitas para a tua simplicidade

a arrogância deste homem

e, para as tuas delicadezas,

os cheiros do asfalto nele?


Aceitas para a tua beleza

a estranheza deste homem

e, para a tua sensualidade,

a prepotência e a força dele?


Diz que sim e a paz te será negada.

Mas não existe outra maneira de amar

senão em guerra.


Amor não é gelo, nem previsível

— não há uma estação do amor.


Amor é simum,

avalanche,

pesadelo,

amor é ermo.


2.

Aceitas para a tua imponência

a permanência desta mulher

e, para as tuas muitas tristezas,

os cristais dos risos dela?


Aceitas para as tuas ausências

a espera desta mulher

e, para o teu lado de ferro,

as asas que ela te dá?


Aceitas para o teu ódio

as luzes desta mulher

e, para os teus dias de angústia,

os mapas que te oferece?


Aceitas para o teu ranger

de dentes os beijos dela

e, até para o teu cansaço,

as almas desta mulher?


Aceitas pra o teu veneno

as veias desta mulher

e, para os teus tempos de câncer,

o abraço em que te protege?


Aceita, tua sapiência,

as pistas desta mulher?

E aceitas que onde ela esteja

é onde estar é melhor?


Diz que sim e tua guerra será negada.

Existem, sim, outras maneiras de amor

que não em guerra.


Amar não é selo, nem imprevisível.

E toda estação, decerto, é estação de amar.


Amar é brisa,

planície,

pensamento.


Amar é zelo

— e não tem meio-termo.


28.2.2008 - I'll shoot the moon (Tom Waits)