Quando os olhos se enchem de um excesso de beleza, fechá-los é voluptuosidade. • Victor Hugo
Uma réstia de sombra penetrou por uma fresta da janela e exprimiu um protesto mudo contra a claridade do lugar. A um canto, em desalinho, o corpo da mulher exibia uma luz muito forte e pegajosa que, divulgada pelas paredes e espelhos, contagiava os objetos.
Algo imperceptível empurrou o mundo para outro minuto. As coisas envelheciam.
Um movimento mais brusco do sonho e eis que a mulher retoma o momento. Abre ligeiramente os olhos e — mistério impregnando o ambiente — os elementos se curvam diante da Beleza.
Subitamente, uma lágrima se desenrolou dos olhos dela. Aproveitando-se desse descuido, a réstia de sombra refletiu-se numa quina da parede, espalhando-se pelos rodapés. Uma flor e uma garrafa de vinho semivazia que brilhavam muito perceberam-lhe a intenção e tentaram impedi-la de prosseguir, mas, frágeis seres de matéria, foram logo absorvidas.
A mulher está feliz. Ei-la que ama e a quem amam. Havia muito que se destinara à emoção, e tanto que terminara por apossar-se da Luz. Assim é que, quando ama, brilha e se emite — ela, a claridade; a cor; o dia. (É nesses momentos que o seu braço pode abdicar do átomo e permanecer apenas gesto.)
Algum móvel, uma jóia e uma pequena peça de roupa tornaram-se, sem uma segunda chance, noturnos, como o avançar da sombra.
Nua sob os lençóis, ela se ocupa, de novo, em sonhar. Macia, esgueira-se, suave e mansa, onde a fantasia. O nácar de sua pele é a própria essência das coisas. O mundo plausível e presumível logo se desfaz e ela está inerente à plenitude.
Eis aqui a Lei: o mundo só é porque é luz e sombra. Há que se combaterem.
Um desenho a grafite, uma aliança de ouro, um poema e até pedaços perfumados de ar já haviam sido englobados pela sombra em sua fome de amplidão.
Ainda sob os lençóis, emaranhada em seu torpor, a mulher se move alguns centímetros e deixa a descoberto um seio plácido, provido de vida própria, que se encanta em acompanhar seu ritmo respiratório, subindo e descendo lentamente, dotando de sensualidade o todo ao seu redor.
A sombra estacou por alguns instantes. Havia que render-se, posto que momentaneamente, ao belo.
Nisso, porém, a mulher, munida então sua maior luminosidade, percebeu a falta dos objetos que a envolviam. Rolando sobre si mesma, abandonou os lençóis e deu-se conta de estar rodeada de sombras. Preocupou-a, entretanto, somente o amado, chegando e achando a casa às escuras. Poderia entender o que aconteceu? Saberia encontrá-la? Conseguiria ultrapassar a sombra — ele, tão frágil e desarmado, despido de sua luz?
Pensando assim, ela esforçou-se por ampliar-se e recuperou a flor e o poema. Nessa hora, porém, o ar, carregado de sem-cor e não suportando mais o peso da própria culpa, terminou de desabar..
O amado está à porta. Uma força de dentro para fora o impede de abri-la. Ele insiste. É quando a força de dentro de faz maior e, levando-o de roldão, a noite jorra sobre o mundo.
No interior do escuro, duas manchas luminosas resistem a ser possuídas, mas são a única luz do universo.
2 comentários:
Olá Miguel,já que disse que é bom que se façam comentários, farei o meu mesmo que em muito eu possa estar equivocado, ora pela super-interpretação, ora pela mínima falta de interpretação. O conto Luz e Sombra, trás em si, assim como a maioria dos contos um elemento que eu acho muitíssimo interessante: A capacidade de nos retirar de uma realidade comum e nos levar a uma visão diferente. Talvez me equivoque ao falar de Niilismo. Devo admitir que a nível de compreensão é muito difícil no primeiro contato (li as "ninfas camaleonicas" umas 10 vezes para compreender, apesar de ser um conto simples), no entanto luz e sombra me faz pensar que a noite vem todos os dias matar o dia, assassinar a luz, tomar posse de tudo, numa viagem maior, a lua é como uma luz derradeira (apesar do conto não ter nada a ver com lua rs mas me ocorreu isso), e no fim o dia ressuscita com a força de sempre. Olhando de um ângulo mais simplista, a sombra impede de vermos a beleza das coisas, nos perde de nosso rumo, trás confusão, é antônima a luz que guia que mostra o caminho. Miguel fica uma pergunta: O que eram as duas luzes que sobraram?
Olhando de outro ângulo ainda, a luz neste caso é o amor e alegria, é beleza, a sombra então pode ser considerada o antônimo, feiúra, tristeza e perca de tal amor (desamor), (não necessariamente essas coisas, mas talvez uma delas). Há também de se dizer pensando assim que o amado não está a amar, pois está despido de sua luz, ela derrama uma lágrima (talvez algo que tenha acontecido, por isso também o amado está despido de sua luz). Será que esta sobra é um momento de desamor, briga, desentendimento? abraços Mestre Marvilla.
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