terça-feira, 4 de março de 2008

Cada um por si

FOI ASSIM: anoiteceu exatamente quando ela, no sinal fechado, percebeu que o motorista do carro ao lado, distraído, mordia levemente o lábio inferior. Induzido por essa visão, o coração dela pulou uma batida. Foi nessa mudança involuntária de ritmo que o outro motorista reparou quando o sinal abriu.

Tornaram-se cúmplices, num acordo feito de avenidas e olhares, enquanto atravessavam a cidade, até uma delicatessen. Ele pediu uma Coca-Cola e ela, um tímido sorvete de creme com crocante. [No jogo de sedução que se seguiu, não foi possível definir quem era assaltante, quem era vítima; quem era conquistador, quem, conquistado.]

Depois, alguém abriu uma porta e deixou que Marisa Monte se materializasse de algum lugar ao fundo e oferecesse a ela o mote para fugir:


Eu não sou da sua rua,

Eu não sou o seu vizinho.

Estou aqui de passagem.

Este mundo não é meu,

Este mundo não é seu.


Mas ela não fugiu e, em resposta, quase rasgou com um pensamento qualquer o silêncio caudaloso que, então, se abateu sobre eles, sem saber que pensavam ambos as mesmas coisas, simultaneamente.

E saíram juntos, abraçados com força, não era porque fosse a primeira hora deles juntos que se furtariam à libido. Muito pelo contrário. Estou aqui de passagem.


É ASSIM: ele subtrai à pele dela a camiseta de algodão e, bolívar, liberta os seios arfantes de sua inexpugnável prisão de lingerie. Ela, serpêntica, enrosca-se nas coxas dele e o surpreende com quantas mãos inventa para tocá-lo. Ele, mal esteve aqui, em beijos abrasivos na planície dos ombros e da nuca, preparando o que haverá em pouco, e já reaparece em outro lugar, desbravando vertigens e regiões que ela ignorava desconhecer na própria anatomia.

Mas. Porque o ar vai ficando irrespirável de tanto uso, é necessário que se abram sem interrupções cortinas portas janelas e, assim, separada do outro, ela retorna rapidamente à consciência e se recompõe. “Não foi para isso que vim”, pensa, sem muita convicção. Este mundo não é meu.

Recortado, nu, contra um néon intermitente, ele também se recupera da presença dela e está mais calmo quando ela torna a aninhar-se em seus braços, sublinhando cada gesto com um olhar muito muito azul. “Pena”, pensam tristemente, hipnotizados.

Os lábios dele beijam de leve o lobo da orelha dela e descem suavemente, sem pressa, até o pescoço delicado que lhes é oferecido. No espaço agora virtual entre os dois, o desejo acumulado de tempos em que ainda não se conheciam forma uma película oleosa, sobre a qual deslizam sons, gostos, cheiros, formas. “Pena mesmo”, repetem, cada um por si.


ANTES QUE um corte brusco de energia elétrica deixe o quarteirão inteiro às escuras, o néon ainda brilha tempo suficiente para ilustrar a surpresa de ambos quando os caninos afiados de um penetram furiosamente a jugular desprevenida do outro, em busca de alimento.


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A ilustração lá em cima, "O beijo", pra quem não sabe, foi pintada em óleo sobre tela, entre 1907 e 1908, por Gustav Klimt, um pintor austríaco. Se um dia perguntarem a vcs no Faustão, digam que, junto com Rembrandt (esse vcs vão perguntar ao oráculo quem é, se não souberem), é o meu favorito. Aqui há uma centena de quadros do cara e uma penca de informações preciosas, ainda que básicas, mas... em inglês, sorry.

5 comentários:

l. p. disse...

Esse foi meu preferido desde a primeira leitura.

Mas tenho um problema com ele: eu só consigo querer que os dois se mordam no final. Não consigo conceber só um mordendo. E todo mundo que conheço pensa assim.

Vou continuar pensando na mordida dupla, hehe.

Abraços. E que se acabe o Arsenal hoje.

Miguel Marvilla disse...

Ué, mas não é no último parágrafo que se mordem? Ou não?

• • •
Ainda bem que não é o Arsenal "Arsenal". Já tô porraqui com esse timinho de m... nosso. Tudo bem. Esperança é a última que morre. Mas morre. Aliás, no nosso caso, esperança é a única que morre, pq os adversários têm saído bem vivinhos...

Géssica Gineli disse...

Hei.

Gostei dele, começo lendo pensando em uma coisa e no final PÃÃÃÃÃÃ, suprise dear.

Abraço ^.~

Jorge Elias disse...

Chego para uma visita enquanto vc esta assistindo o jogo do tricolor.
Não sei se foi essa percepção do descompasso cardíaco que me fez um "eletricista do coração".
Não adiantou nada a teoria.
Concordo com os práticos, esses sim sabem das coisas...
Bom, sigo marcapasseando o rítmo e admirando seu talento.

Abraços,

Jorge Elias

Miguel Marvilla disse...

Jorge, só mesmo a visita de um grande "eletricista de coração" e poeta, pra dar jeito na taquicardia que essa porqueira dese tricolor provoca. Não é que o desgraçado empatou com o Rezende? Rezende?!?!? Que diabos é o Rezende?

Isso deve ser culpa da minha mulher. A gente teve uma briga e se separou por duas semanas. Nesse tempo o Fluminense fez 14 gols e jogou a melhor partida que eu já vi um time jogar, contra o Arsenal. Ontem ela (a Priscila) fez as pazes comigo e voltou pra casa. Resultado: empate com o (quem?) Rezende. Acho que vou pedir divórcio. Deve valer, pelo menos, o título do Mundial, em Tóquio...