segunda-feira, 3 de março de 2008

Janela

O corpo era muito longe. Tudo que podia fazer estava em fomentar-lhe ânsias de não estar preso.

Zoom, aproximou a janela: um pássaro tentou um looping e, desarvorado, desabou o mundo de cabeça para baixo.

O âmbito carregou-se de um cheiro fétido, no silêncio que se seguiu. Ela decidiu que era chegada a hora da liberdade.

Diante do espelho do armário embutido, calçou as luvas de lã e disfarçou-se com uma alma nova, que havia guardado especialmente para uma ocasião como esta. Tanto tempo enclausurada e, no entanto — admirou-se —, nenhum cupim, nenhum roído, nada de memória.

Saiu de casa pensando animosamente nas coisas que a reencontrariam. Sorriria, caso a reconhecessem.

“Não”, disse para si mesma. “É cedo ainda. Sendo assim, devem estar todos dormindo.”

Enganou-se, como durante sempre. No instante em que pisou a rua, re-parou na chuva. Amedrontada, voltou sobre seus próprios passos, para não se perder/denunciar, fechou a porta e esqueceu-se em definitivo de onde pôs a chave. Não queria mais sair. Queria raiz.

O cheio fétido era de um enterro e persistia incrustado no ambiente.

Súbito, feito uma evidência de traição, um raio de sol varou as copas dos edifícios em frente e sublinhou-lhe no olhar um rasgo de serena idade. Ela continou, ainda assim, radicada em seu canto, à espera de algo que a co/movesse, até que a tarde, abdicando da luz, abortou uma noite gélida, quase tátil, que permaneceu boiando no ar com sua lua e uma prole numerosa de estrelas.

Ela se levantou, enfastiada, e tomou banho. Esfregou-se com força, buscando arrancar da pele o cheiro do dia, até agora presente. Estarrecida com a resistência que encontrou, deixou-se ficar na banheira, enquanto a alma nova, esta sim, fina e emancipada, fugia pelo ralo.

Quando se deu conta de que precisaria de outra alma, ainda sentia o Cheiro, mais forte. Impotente, enxugou-se com pressa e correu, nua, para a cama. O Cheiro a perseguiu. Trancou portas e janelas esperando detê-lo, mas ele já estava em todos os lugares, múltiplo e insistente.

Uma mosca, em vôo cego, riscou na atmosfera arabescos incompreensíveis.

O enterro passou dentro do quarto, as pessoas usando suas máscaras de não-caras e seus espíritos fúnebres.

Ela não se mexeu de seu lugar, enquanto se desenrolavam lágrimas de desespero dos não-olhos das carpideiras. Depois, caminhou até a janela, tornando a abri-la. A noite entrou numa lufada. Ela livrou-se da pele e, ignorando o cheiro que se desprendeu, arremessou-se para fora, tentando um looping.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Marvilla,

Janela
Minha interpretação:

Nas primeiras linhas fica claro o aspecto libertário, a não privação, o desejo incessante pela liberdade. A representação do looping reforça o caráter da finitude: o ciclo vicioso. A desorientação, uma característica da própria indefinição, intempéries. Um pássaro em looping não objetiva a morte propriamente dita(daí faço uma ressalva do que Sodré diz: morte metafórica), porém sim da liberdade por mais que seja mortífera. O cheiro sórdido é a indicação mais refutável de que se poderia obter, se prevendo, então, a negação. No entanto, o escopo perfeito para uma harmonia letal. A previsibilidade completamente imprevisível se torna para um leitor desavisado uma discrepância. A vestimenta ganha conotação, a personagem é vestida e assim adquiri espírito no que é guardado embutidamente. Enclausurada, perde noção de tempo, mas não de espaço, fundamental instrumento de articulação da personagem. Entra, algumas vezes, em contradições uma faceta identificadora e autêntica do "vivo-morto". No trecho "[..] Enganou-se, como durante sempre [...]" sempre durantemente se enganava como uma válvula de escape, cômoda. A dualidade de termos expostos no canto massifica a liberdade da não liberdade. A retomada da sordidez é impactante na apreensão da personagem, no trecho: "[...] radicada em seu canto [...]" surge o presságio do que poderia acontecer(o animal acuado sempre ataca). Até pude notar uma variante lunática na personagem. Posteriormente, a mesma se transpõe, procura apagar veementemente o rastro do seu passado-presente, como se fosse uma marca eternamente indesejável. Em uma atitude em vão, tenta se emancipar do seu anterior. A sordidez se instaura, impera. Nua(surge uma idéia de pureza). Tranca-se como se pudesse se aprisionar para que a sensação não lhe tomasse conta. No trecho: "[...] Uma mosca, em vôo cego, riscou na atmosfera arabescos incompreensíveis [...]" associo rapidamente ao looping do pássaro, a geometria da finitude: a premonição do fim do ciclo ou seu verdadeiro início. A constatação taciturna, lúgubre: [...]" Usando suas máscaras de não-caras e seus espíritos fúnebres; o ambiente funesto marcando a presença mórbida do desespero infalível no sentido em que naturaliza o natural e clareia o clareado. Numa atitude "robótica", por assim dizer, ela completa em calafrios(lufada) a sua liberdade da não liberdade, desintegra a acanhação(acanho) e remonta o começo.

Um conto pitoresco.

Depois da re/leitura desse conto e do término da leitura do livro. Vou comprá-lo na livraria mais próxima.. não por estar falando diretamente contigo.. mas sim pelo desejo de uma boa leitura.

Até mais, Vitor S. Sarmento

Miguel Marvilla disse...

Rapaz! Fala sério! Tu faz que curso? Tá querendo entrar na Universidade pra quê? Vc viu coisas aí que eu nem imaginava. Melhorou a minha própria concepção do conto. Isso é interpretação de quem já tem um olhão desse tamanho aberto para o mundo. Desse jeito, vc vai fazer minha fortuna crítica... Bela leitura, Vítor.