sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Pink & Floyd


Só pra mudar de assunto: olhem só que gracinhas. Pink e Floyd. São dois capetas. Acabaram de destruir os fones de ouvido Philips com silicone da Pri; correm a casa toda; só querem saber de dormir atrás da geladeira ou na cama da minha mãe; tomaram posse da minha cadeira de rodinhas (cujo encosto já foi devidamente dilacerado pelas unhas deles); custam uma fortuna em ração, areinha química pra fazer xixi e cocô, vermífugo e vacina; mas são absolutamente lindos. Quando vieram pra cá, presentes do Luís e da Tatiane, há um mês + ou -, lembrei-me imediatamente do gato do Reinaldo Santos Neves, que chegou a Itaúnas e pensou que nem se vivesse mil anos ia conseguir cagar o suficiente pra usar aquele areal todo...

Putz! E repararam como o Floyd parece gato de desenho animado? Ou um gremlin, sei lá (só que ele é bonzinho)...

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Congresso de Letras

Aí, gente, tá rolando na Ufes, até o dia 23, o IX Congresso de Estudos Literários, mais uma superprodução do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL-MEL). Os encontros acontecem em vários locais da Ufes (Auditório do Centro de Artes – Cemuni IV, salas do IC-III e do prédio do Mestrado. Se clicar aqui, vc ficará sabendo de toda a programação do evento. Ainda tem muita coisa rolando e muita pra rolar até a sexta-feira.

Pena que dois congressos superimportantes (o Internacional de História e este de Letras) estejam ocorrendo simultaneamente, inviabilizando a presença de muitas pessoas, como este escriba, que gostariam de participar dos dois. Sugiro que, no futuro, os organizadores de congressos (de todas as áreas) na Ufes entrem em contato uns com os outros e tentem fazer uma programação não excludente. Isso, inclusive, manteria a Universidade na mídia o tempo todo.

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Eu tava devendo este post ao Lucas. E mais o comentário ao belo livro dele. Em breve.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Livro novo!


Finalmente, depois de um tempão na gaveta, e atendendo a insistentes pressões, quer dizer, pedidos, do Gilvan, resolvi publicar a minha pesquisa de mestrado: O Império Romano e o Reino dos Céus, segundo volume da Coleção Biblioteca Universitária, da Flor&cultura. Nesse livro eu analiso um discurso ("De laudibus Constantini") pronunciado no século IV por um bispo palestino (Eusébio de Cesaréia) no Jubileu dos trinta anos de governo do imperador romano Constantino, tido como o primeiro imperador cristão, o governante romano que não apenas acabou com as perseguições aos seguidores de Cristo como também restituiu-lhes a liberdade, promulgou leis favoráveis a eles e concedeu-lhes privilégios (isenção de impostos, por exemplo... é, essa sacanagem vem de 1.700 anos) e riquezas tais que, em pouco tempo, no espaço de uma geração, eles passaram de perseguidos a perseguidores e tornaram-se o alicerce moral, ético, intelectual e espiritual do Ocidente.

Mas o barato desse discurso do Eusébio é que, mesmo sendo um discurso cristão (e grandinho: a versão moderna tem 80 páginas no formato 14 x 21. Imaginem aquele calor desgraçado do verão em Constantinopla, ano 316, sem ar condicionado, e um bispo lendo 80 páginas, em grego... e ai de quem saísse.), então, mesmo sendo um discurso cristão, ele não fala uma única vez sequer no nome de Cristo, em crucificação ou sacrifício, essas coisas tão caras aos cristãos. Por que um bispo, diante de um imperador cristão (de fato, porque de direito ele só se batizou na hora da morte) que governava quase por consenso, não fala em o nome de Jesus? As hipóteses são várias, respostas definitivas não há.

Se vc quiser saber mais, esteja lá, no coquetel de lançamento, na sede da Adufes, quarta que vem, 21, às 19h00. A Adufes é aquele prédio com frente de vidro ao lado da "penteadeira de bordel" (o prédio da FCAA), na Ufes. Quem quiser comprar, leva R$ 25, que este escriba quer ir a Paris de novo ano que vem. Quem não quiser, está convidado e será bem-vindo do mesmo jeito, que o mais importante é a conversa e o abraço.

Congresso Internacional de História, na Ufes


Outro troço imperdível. De 19 (segunda) a 22 (quinta) de novembro, alguns dos melhores historiadores brasileiros — tipo Gilvan Ventura da Silva, Adriana Campos, Manolo Florentino, Norma Musco Mendes, João Fragoso e Norberto Guarinello, entre outros —, mais os franceses Pascale Girard e Georges Lomné, estarão na Ufes para o XVI Simpósio de História da Ufes / Congresso Internacional Ufes/Université de Paris-Est (Marne-la-Valée).

Se isso não for atração suficiente para vcs, saibam que este escriba vai estar lançando livro novo (O Império Romano e o Reino dos Céus) lá, na sede da Adufes, às 19h00 de quarta, 21; e vai estar apresentando, às 14h00 de quinta, 22, no IC-3, uma comunicação coordenada pela Ana Gabrecht. Ponham-se a caminho, então, e a gente se vê lá.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A terceira realidade

I

Uma corrente de ar frio penetrou pela fresta da porta. Ela interrompeu momentaneamente o sonho agitado, encolheu com sensualidade as pernas e puxou as cobertas para a cabeça. Restos de uma sonata de Händel e de alguns improvisos de Schubert permanecem pelo espaço, emaranhados ao odor de jasmins e à respiração dela em ré menor, opus 125, para cravo e violinos. Materializados na atmosfera, corpos suados, de um passado ainda quente, teimam em não se perder na distância da memória. Um gato barítono, em tom degradée, era para sempre no cesto de revistas, aquecido entre as coxas belas das mulheres também que as povoavam, ilustrando-se de erotismo e beleza.

Parcialmente misturada à realidade, ela pensou como seria bom se chovesse e tornou a adormecer completamente. Pois choveu. Uma chuva brava, violenta, que, em sua ferocidade, arrastava casas, arrasava bairros inteiros, carregava pontes, ruas e avenidas, tornando de água o mundo todo.

As coisas emboloravam, mas ela vicejava em seu ambiente bucólico, os corpos oleosos de suor: ela, valsas, e ela, as mãos sempre buscando mais o que acariciar, famintas. Abraçavam-se, sorviam-se, mel na boca, o corpo retesado, ela ali, ela, enfim, os olhos e sua luz aluada, a outra ficava azul e já não eram distintas uma e outra, Schubert ao fundo, sustenido, suspensas as duas no ar, até que é hora de perder a qualidade de pluma, de descer pela escada de jasmins, de retornar ao chão.

Ei-lo, então, o velho planeta e seus objetos molhados. Tocou-se, desperta, a ver de onde provinha toda a umidade em volta. Redescobriu a suavidade da pele. Abandonou-se, lasciva, ao próprio toque, excitada. Os seios arfavam. Não era ela em si se tocando, mas a outra, a que se fora. A que — ainda — estava.

Os seios, homenagem de algum deus à estética, insistiam em seu descontrole. De súbito, ela se ergueu por alguns segundos, sustentada por gestos invisíveis, arqueou o corpo e, depois, deixou-se ficar, após um gemido mais prolongado, sobre o cetim das almofadas.

O gato listrado também se movera de seu cesto de revistas. Por entre as samambaias, avistou-a, arfante, envolvida em sua dupla realidade, alheia a uma terceira, a que chovia e respingava, pela janela aberta, o tapete branco. A terceira realidade está se alastrando para dentro da casa, pensou o gato, acomodando-se perto da lareira. Ao mesmo tempo, gostaria de saber a quem creditar todo o líquido que invadia seu antes morno ambiente, se aos pesados cúmulos-nimbos, que escondiam com seus cristais de gelo o céu conhecido, ou se àquela mulher acetinada que parecia não se satisfazer com as mãos continuarem os braços, porque as experimentava em todas as partes vistas e não vistas do corpo, despreocupada em conter o rio viscoso que nascia em si.

Quando, por fim, ela retornou de vez à cama e às almofadas, deu-se conta de como ficara estranho tudo. As coisas que entrevira em seu delírio apenas úmidas estavam na verdade encharcadas. Não as reconhecia agora, que eram como antes que ela as observasse de outro ângulo. Os objetos amorfos, fantasmas sem cheiro nem cor, que compunham suas sensações, de novo eram só restos e uniformes entregues aos seus limites, repletos de suas coerências, já que ela voltara. Não conseguia apreender o sentido de mudarem assim, radicalmente, abdicando de seu lirismo e de suas liberdades, resignando-se, passivas, ao tato e à forma. Qualquer hora dessas precisava ausentar-se novamente, romper a casca desse mundo plausível em que nada se permite além do previsto e do usual.

Mas não. Não seria possível fugir outra vez: havia muito que elidir, muito que transpor, e ela já não tinha forças suficientes para isso, tanto se desgastara nessa última fuga. É preciso um tempo para permanecer, para também acomodar-se, e é agora.

Diante dessa constatação, uma lágrima brilhante, límpida, abandonou seu esconderijo e percorreu em silêncio um caminho sinuoso, torto, pelo rosto dela até despencar sobre a alvura plácida do seio. Ela sentiu o contato cálido da lágrima no peito, mas não fez gesto algum. Apenas chorou mais, de dor, de impotência, e as lágrimas irmanaram-se à chuva, apagando a lareira, inundando por completo o lugar. Tudo se liquefazia rapidamente. O quarto, recém-nascido oceano, era impossível de não ser visto como tal.

O gato acordou bruscamente, assustado, semi-afogado, sob a água. Em seu desespero, emergiu junto a uma sinfonia de Haydn, que boiava como podia, misturando claves e bemóis, breves e semibreves, esbarrando em garrafas de vinho húngaro, agarrando-se a peças de roupa, que, imediatamente, afundavam e não voltavam à superfície.


II

Longe dali, outra mulher, tão bela quanto serena, descobriu-se só. Nada com que se ocupasse preenchia o vazio que a possuíra desde que, por medo, desistira de se emocionar. Agora, sentia falta da luz azulada que as envolvia quando se encontravam, da boca molhada, sedenta, do gosto particular de cada uma, do seu cheiro entranhado nela, que, no entanto, era de ambas, ilhadas em seus prazeres, ignoradas as imediações.

E esta hora, furtando-se a passar. Mas é necessário um pouco de fel. É preciso que sofram para que o seu amar-se seja mais que uma simples soma de duas. Pena que não possa ser evitado o vácuo que se formou, esse imenso vazio sem cor que a esmaga e que não imaginava tão pesado, este fardo.

Pela vidraça, a chuva lava o mundo. A janela emoldura a paisagem na parede. A enxurrada carrega sentimentos distantes e os mistura ao barro que desce das montanhas e às folhas que caem das árvores. A solidão se tornou tátil, palpável, e suas mãos a tocam, buscando suprir-se de companhia, completar o puzzle de si.

Passou dias à janela, imersa metade em si, metade no vazio. Quando, ao seu lado preenchido — o que doía pela ausência do outro — um pássaro trinou toda a “An der Schönen, Blauen Donau”, regido por Karajan, saudando o sol que ressurgia, o mundo ainda estava úmido. Então, ela ajeitou os cabelos, preparando-se para continuar sua permanência, olhou-se no espelho, e não se viu, não se viu inteira. Faltavam-lhe partes: era apenas meio-rosto, meio-riso, meio-olhar. Como as pessoas reagiriam, abraçando metade corpo, metade falta? Como se faria entender, usando meias-palavras? Não. Também é necessário retroceder, mudar de idéia. Não poderia gastar o seu tempo inutilmente, dormir abraçada ao travesseiro inanimado, rude (quando seu corpo pede mãos, pele, movimento), só por determinismo, porque assim tem de ser. E se, além disso, ela fosse se gastando mais e mais até que desaparecesse por completo? Perderia, então, qualquer outra chance que pudesse ter, pois não há novas oportunidades para os condenados à solidão. Foi pensando assim que calçou as sandálias, perfumou-se, saiu, trancou a porta e jogou a chave fora — não ia voltar.


III

Caminhava nua, mas ninguém reparava nela, não totalmente.

À medida que se aproximava de seu destino, uma sensação de angústia e excitação ia tomando conta dela. As coisas em volta, desfocadas, tomavam a forma que ela sabia tão bem. O mundo usual deixava de haver.

Quando chegou, a casa estava fechada. Olhou pelos vãos da persiana e, pela primeira vez, não reconheceu o que não-via. O lodo esverdeara as paredes e mofara as cortinas. A um canto, desalinhada, imóvel, deixando entrever os seios insatisfeitos através das tramas da lingerie, ela vislumbrou a outra. O corpo muito branco ainda tinha as suas mãos impressas por toda parte, seus lábios ainda estavam marcados em carmim sobre a alvura da pele. Ficara eternizado na outra o que já (não) era seu.

Então, ela forçou a porta até conseguir entrar. Mesmo ferindo as mãos, perfurou o silêncio quase intransponível do interior, que, vez em quando, desabava sobre ela. Algum tempo depois, cansada e ofegante, envolvia nos braços a amada, afastando-lhe as rêmoras e as algas, limpando-lhe o rosto, penteando-lhe os cabelos. E foi assim — beijando-a calorosamente — que se iludiu com que ela fosse levantar-se e falar de amor, como antes. Mas ela não se levantou e não falou de nada. Permaneceu fria, estática, sem armas.

Nesse instante, tudo perdeu o que ainda tinha de voz.


IV

Uma sonata de Beethoven desprendeu-se do teto, escorreu mansamente pela parede e, escavando o silêncio, tingiu-as de luz.


domingo, 11 de novembro de 2007

Último Café do ano


Terça próxima, 13 de novembro, 19 horas. Nem sob ameaça de guerra nuclear percam o último Café Literário que o Sesc promove em 2007. Ninguém menos que Reinaldo Santos Neves e Fernando Achiamé, com mediação deste belo (é, tem gente que acha) escriba que vos fala, vai estar lá, no palco no Centro Cultural Majestic.

A humildade deveria me impedir de dizer que é imperdível. Deveria...

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Resposta para a Paula Fiorotti 1

A Paula Fiorotti, que tem um blog cor de rosa ali na esquina (http://poesiaeexpressao.blogspot.com/), escreveu há um tempão, sem espaço entre a pontuação e a letra seguinte (uma característica muito interessante), como se assim pudesse economizar tempo para pôr mais coisas na tela, o seguinte:

"Olá Miguel,
Tudo bem?Gostaria apenas de fazer uma breve análise de seu livro "Os mortos estão no living" com o intuito de saber o porquê dessa temática.Sua obra explora a morte,que é um assunto polêmico,pois nada se sabe sobre ela,ou quando se sabe,é omitido.Você escolheu abordar esse assunto por ele ser encarado na sociedade atual como algo enigmático e misterioso?Porque somente quem leu seu livro, sabe o quanto isso é verdadeiro e presente nos seus contos.São belas narrativas carregadas de aliterações e sinestesias e dentro de tudo isso,percebemos(nós,leitores) que a morte é sim,uma forma de descrever diversos eventos que não se fundem,como é a proposta do seu livro.São textos independentes,sem personificação e você ainda consegue,maravilhosamente bem,concretizar algo tão abstrato em nossas mentes,alguns devaneios,certas loucuras,diria assim.Em se tratanto de tanta peculiaridade,foi esse "mistério" ao redor da morte que o fez escrever o livro?Interesso-me em saber porque, é fascinante o modo com o qual não moralizou sua obra,mesmo tendo uma temática tão pouco "bem explorada".Ainda curiosa,gostaria de saber se o termo "living" seria a justificativa para mostrar que os mortos estão em nosso meio,por toda a parte,sempre presentes?Um abraço."


• • • Vai daí que:

Paula, pra começo de conversa, discordo um pouco de vc quanto a achar que a morte é uma temática “tão pouco ‘bem explorada’”. Acho que a morte é um dos temas mais recorrentes da vida – e aqui incluo a Bíblia, Shakespeare, Dante, Woody Allen, Rembrandt, Verdi... enfim, parece que todo mundo já escreveu, pintou, compôs ou deu algum pitaco sobre a morte (veja, entre outros, um filme chamado Os últimos passos de um homem). O chato é que, sobre esse assunto, todo mundo tem razão, uma vez que, da morte, a única certeza é que ela chega, mais cedo ou mais tarde (no meu caso, quanto mais tarde melhor).

Em Os mortos estão no living (acho que já disse isso em algum lugar neste blog), eu não moralizo nem trato o tema da morte como algo enigmático, porque acho a morte muito simples: num dado momento, os processos que mantêm seu corpo funcionando param e vc já era. Até onde sabemos, nenhuma outra espécie pensa sobre a finitude da existência. Nosso problema é exatamente este: tentar entender que não vamos durar para sempre e aceitar que a maioria de nós, daqui a cem anos, se tanto, estará absolutamente morta e esquecida. Nós não conseguimos, me parece, lidar com a idéia de um mundo sem a nossa presença.

[Continuo depois. São 2h50 de quinta-feira e Morfeu acaba de me dar um abraço. Impossível não aceitar.]

Quatro assassinatos (quase) sem motivos

1. Tinha um leve defeito verde no olho anil. Desanimado pelo ar frio e impassível da manha, espremeu o passo e desapareceu numa viela mal disfarçada no sem-cor da paisagem. Edifícios brotaram subitamente de uma lacuna qualquer em direção ao céu que se descortinava. Não obstante o belo espetáculo de fototropismo, ele continuou julgando o ambiente enfadonho, quando tomou o elevador. Já no apartamento, abriu a janela da sala e, observando os néons em estado de desaparecimento, enforcou-se com os fios do toca-discos.


2. O sol fugiu por uma fresta do horizonte e incendiou os cabelos da mulher parada diante da indecisão de ficar mais um pouco ou ir dormir. O homem passou por ela e deixou no ar possibilidades tardias de sexo. Seguiu-o, a madrugada ainda estava prenhe de intenções. Não falaram nada, nem era preciso. Mas, apenas entraram no quarto minúsculo de um hotelzinho da periferia, ele a matou. Em seguida, violentou-a, limpou a consciência na toalha imunda do banheiro idem, trancou a porta e nunca mais foi visto.


3. A lágrima surgiu, espessa, junto com a claridade matutina. A noite havia sido de ouvir estrelas distantes com olhos de astrônomo e de tentar contato com astronautas extra-humanos, uma fuga. Fracassara de novo, por isso, frustrado, devolveu a imaginação ao seu lugar no bolso do pijama, dando, enfim, pelo cansaço. No banheiro, mijou toda sua ruína interior na pia. Foi quando a mulher logrou libertar-se de seu sono milenar e perguntou-lhe as horas com voz e gestos de múmia. Respondeu qualquer coisa intangível ao raciocínio, enfiou a cara na privada e vomitou. A mulher levantou-se pensando com o estômago, implorou ao espelho que a recompusesse para o dia em gestação e nunca soube explicar por que foi assassinada pelo marido. Então, ele a deixou caída no tapete e voltou para o vômito interrompido.


4. Etc.

A resposta grandona para a Naiara

Meio escondida lá em “O domínio”, a Naiara escreveu: “Sou uma "fã" desse livro, já que ao lê-lo, minha imaginação foi despertada de um sono mto profundo...
É dificil, dentre os 31 contos, escolher o meu preferido. Porém, acho que o meu preferido é esse: O Domínio.Todas as vezes que estou dentro de um ônibus e vejo alguém tirando um cochilo, eu me recordo do conto e começo a lembrar de cada pedacinho do conto...e isso é um relaxamento e tanto!
Mas...ao ler esse conto, fiquei com uma dúvida na minha cabecinha... Vc termina (ou nem termina!)o conto com um "que":"ninguém acredita que"
Isso me deixou mto curiosa...e não só a mim, como a mtos amigos que tbm se fascinaram com o seu livro.
Agora me responda Marvila: O que vc qria com isso? Qual foi o seu objetivo com esse "que"?
Parabéns pela obra!”

Então... aí eu respondi um monte de coisas e o Blogger deu pau e perdi tudo. Só agora, depois de enrolar um tempão é que pude voltar aqui, pra cumprir minha promessa de dizer algo a respeito.

• • •

É o seguinte, Naiara: vc nunca se pegou caindo no sono no meio de um pensamento? Pois é: a mulher está ali, ao lado do narrador (o narrador é quem, a duras penas, tem a palavra), e ele, encantado... Até que pára de resistir a ela e se entrega, antes de completar a frase (o sono aí é, talvez, uma metáfora para certas paixões que tomam conta da gente quando a gente está mais distraído). O Drummond, num poema maravilhoso (um dos meus favoritos, aliás), “Caso pluvioso”, fala dessa mesma paixão avassaladora e incontrolável:


A chuva me irritava, até que um dia,

descobri que maria é que chovia.


A chuva era maria, e cada pingo

de maria ensopava o meu domingo.


E por aí vai. Ela aumenta de volume, chove sem parar, obrigando o poeta a criar neologismos para sintetizar o que sente (“chuvadeira Maria, chuvadonha, / chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha”) e engolfando o mundo todo. Até que, ao final, “anti-petendam cânticos”,


Os navios soçobram. Continentes

já submergem com todos os viventes,


e maria chovendo. Eis que a essa altura,

delida e fluida a humana enfibratura,


e a Terra não sofrendo tal chuvência,

comoveu-se a Divina Providência,


e Deus, piedoso e enérgico, bradou:

Não chove mais, maria! — e ela parou.


Acho que escrevi “O domínio” sob a influência dessa idéia de paixão: algo tão avassalador e indomável que sai levando tudo de roldão. Pelo menos essa me parece a paixão que vale a pena. Aquela em que a gente “mergulha de cabeça torcendo para o fundo não chegar”, como diz o Selton Mello para a Débora Fallabela, em Lisbela e o prisioneiro (parabéns pra quem viu). Parece, infelizmente, que já não se fazem paixões assim, tudo tem de ser justificado, pesado, medido, raciocinado... mas o bom é quando nos deixamos levar, não fazemos perguntas, não queremos saber por quê... O bom é quando a gente ou percebe de súbito que “maria é que chovia” ou adormece antes de saber o que estava para pensar.

Para Mary Kiedis

Lá em "Casamento", a Mary Kiedis diz: "Posso estar enganada, mas o provavel é que o vest ufes cobre uma análise geral dos contos, algo sobre o estilo de narração, etc." e fulmina: "o que você acha?"

Menina, eu achar alguma coisa não vai adiantar muito pra vc, porque vá a gente saber o que passa na cabeça da banca de Literatura do VestUfes. Uns três anos atrás, pra vc ter uma idéia, caiu um poema meu ("Químicas") no vestibular. Fizeram quatro questões com ele: três de Literatura e uma de... Química. Acertei a de Química e mais duas, hehe... Portanto, não sou fonte muito confiável nesse quesito. Mas vc diz que leu o livro. Creio que isso baste para vc dar conta de uma prova — mas espero que tenha ajudado vc a se interessar mais ainda por Literatura.

Boa sorte, moça.

PS: Mary, já ia esquecendo de dizer: vc foi a primeira pessoa que percebeu — e comentou sobre — o "clima psicodélico do livro". Eu achava que ninguém havia se tocado com isso. E é uma característica importante do livro, junto com o clima de farsa, o niilismo, a sensualidade (às vezes meio bruta), o romantismo, o realismo fantástico, o erotismo...