sábado, 29 de setembro de 2007

O domínio

No ônibus, a mulher dormia, linda, ilhada, alheia às cercanias. Tinha um sono tão pesado que obrigava o veículo a se arrastar morosamente pelas ruas esburacadas. A cada solavanco, o sono dela ficava mais denso, embaçando os vidros das janelas, misturando-se às nossas respirações difíceis, atrapalhando nossos movimentos, como um anestésico. Aos poucos, a letargia era tanta que perdíamos a noção das coisas e o próprio motorista abandonou à sorte a direção do ônibus, atropelando, sem qualquer ressentimento, os pedestres distraídos e os cães vadios, subindo pelas calçadas, invadindo as lojas.

Na cadeira ao lado, eu tentava resistir ao torpor que insistia em que meu corpo não se movesse. Ela estava muito próxima de mim para eu não notar, com admiração crescente, a textura serena que lhe fugia da pele, em contraste com o sono pegajoso que emitia. Seu vestido, ventreaberto, permitia à evidência um seio límpido, belo, suave, deixando por instantes a prisão da lingerie ao ritmo compassado da respiração, isento de vícios.

Senti-me tentado a tocá-la. Com esforço, levei minha mão até sua perna e a deixei pousada ali, sem tentar qualquer outro gesto, por medo ou por cansaço, não sei. Ela escorregou a cabeça até o meu ombro e uma nuvem soporífera mais forte escapou de seus pulmões e me envolveu, mas, nesse instante, quando eu já sucumbia ao sono, o ônibus sacolejou ao derrubar um hidrante e isso foi suficiente para que eu me recompusesse, assustado.

Os demais passageiros já estavam totalmente dominados, fixos nas posições que puderam preservar para si, já que o sono ocupava todos os outros espaços enquanto aumentava de intensidade, adquirindo autonomia, de forma que, em pouco tempo, o ônibus havia parado, incapaz de transportar sem ajuda sua carga.

Minha mão, séculos depois, por vontade própria ou puro reflexo, abandonou a inércia e atreveu-se a outro movimento, aconchegando-se entre as pernas da mulher. A maciez que encontrou e a diferença de temperatura fizeram-me reagir e empurrar a cabeça dela para longe do meu ombro, juntamente com a nuvem soporífera que me sufocava. Percebendo que já não estava tão imerso quanto os outros em seu sono — e eu era o único —, pude ampliar minha ação e alcançar seu seio desprotegido. Toquei-o levemente, temendo que se desfizesse em miragem, mas ele resistiu ao meu contato e ofereceu-se mais. Deixei-me, então, seguir o caminho do corpo dela, admirando cada milímetro de pele que descobria, abrindo novas possibilidades, trilhando cada detalhe, indiferente a Morfeu, dono de todos que não eu.

Lânguida, ainda entorpecida, ela ajeita com sensualidade os cabelos dourados, espalhando um pouco da luminosidade escondida sob eles pelo ambiente pastoso, e fecha o vestido, prendendo em si minha mão pousada sobre o seio. Talvez por não ser um objeto qualquer, mas a mão que acaricia e que solda pele e pele, o que tem junto ao peito, ela concede em abrir ligeiramente os olhos, gesto bastante para esclarecer os objetos existentes e os latentes com sua luz acobreada.

O ônibus havia parado bem no centro da cidade. Por sobre a nossa dormência, distingui o barulho do trânsito e das pessoas irritadas querendo chegar mais cedo a casa. Era um fim de tarde multígrado. O sol agonizante fortalecia as perspectivas modernas dos edifícios e projetava sombras elípticas sobre o asfalto. Um motor engasgou e morreu. Um homem teve um infarto, outro deixou cair o livro de Fernando Pessoa que lia e adormeceu, encostado a uma banca de jornais. Devagar, a cidade foi parando, até que todos dormiam a sono solto onde e como podiam. Não consegui evitar um bocejo. Ao meu lado, a mulher linda, atenta às cercanias, aproveitou-se desse descuido e me possuiu de vez, com um beijo melífluo.



Os semáforos tentam inutilmente controlar o caos. Há nuvens, ninguém telefona, ninguém observa o luar incipiente, ninguém acredita que





Resposta para o Guilherme Daher, parte II

A questão do tempo em "Dies irae", creio dizer respeito ao distanciamento entre um Lázaro ingrato e um Cristo simultaneamente humano e divino (ou pretensamente divino). Lázaro portar o momento sob a axila é reflexo imediato do tempo que ele vive. É Natal. No Natal, as pessoas andam apressadas, muitas vezes com presentes debaixo do braço. O trocadilho foi inevitável: “Era Natal. Portanto enfiou o presente debaixo do braço [...]”, presente tanto representando qualquer coisa que se dá ou concede a alguém, inclusive dádivas e dons, segundo o Houaiss, quanto o instante atual. Lázaro fugiu com o tempo (o que pode ser interpretado como a reprodução ad infinitum de características desabonadoras da humanidade, tais como a ingratidão), fugiu com a única coisa de que Cristo talvez precisasse, e, quando este o encontra, ele não sabe explicar nem o que fez nem o que estava fazendo em um tempo que não era o seu. Não era? Ao longo da história, quantos Lázaros não existiram? Quem de nós pode jogar a primeira pedra?

Cristo está furioso. Na verdade, essa é uma característica das mais humanas em um Deus que se faz homem. Não apenas a substância carne de que é composto, mas o espírito humano é que o caracteriza — e engrandece. Cristo fica furioso com os vendilhões do Templo, lembram-se?, e os expulsa a chicotadas. Cristo ficaria, sim, furioso, ao reencontrar aquele a quem salvara e de quem, em vão, necessitara. A Bíblia não diz nada disso (exceto a surra nos vendilhões), mas nós podemos imaginar tudo isso. Então, podemos imaginar tb que, quando Cristo surra Lázaro até a morte (tomando, por fim, a vida que lhe devolvera), o povo imagine que ele apenas está fazendo o que qualquer um faria, punindo um infrator, restabelecendo a ordem (uma ordem) das coisas. Já não nos cansamos de achar que a polícia ou qualquer um que represente a autoridade policial, por exemplo, tem, sim, de agir com violência, de eliminar o marginal? Vingança executada, portanto, sob aplausos do povo, Cristo pode, enfim, sentir-se Deus e subir aos céus.

Ou não?


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PS: O conto faz uma descrição naturalista de Cristo: sujeira, barba por fazer, piolhos, carrapatos. Parece-me muito mais justo imaginar que, em uma região de negróides, como a Galiléia, não existiria um Cristo como o pintou o imaginário medieval europeu: branco, de olhos claros, limpo etalvez cheirosinho. Cristo não era humano? Então. O lugar não tem água e, pra piorar, é tremendamente empoeirado: o deserto está ali, à porta. Na época do Império Romano, banho se tomava muito raramente: nossos modernos ideais de assepsia não eram sequer sonhados. Então, a figura de Cristo — ou a de qualquer pessoa — tem necessariamente de levar em conta o ambiente e o comportamento da época. Eu me arrepio imaginando, principalmente, o cheiro das pessoas (tenho horror a gente fedorenta). Devia ser complicado até pra transar... Talvez por isso não houvesse explosão demográfica. Tenho uma teoria: a população começou a crescer depois da invenção do banho com sabonete...

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Resposta para o Guilherme Daher, parte I

O Guilherme aí nos comentários de Dies irae, fez umas perguntas difíceis de responder de uma vez. Vamos por partes, então. Rapaz, vc vai acabar virando crítico literário. Tremendamente apropriadas, além de muito bem organizadas, suas perguntas. Fiquei meio zonzo, sendo posto assim na parede. Mas vamos lá. De antemão vc fique sabendo, como eu já preguei por aí afora, que a minha resposta é só UMA das respostas possíveis. As suas, tão verdadeiras quanto as minhas.

Isso posto, toca o comboio:

Começo pelo fim: Lázaro, no conto, não na Bíblia, que lá ele some assim que ressuscita, me parece ter-se negado a testemunhar a favor de Cristo (logo Lázaro, o ressuscitado), como o fez Pedro, que disse "não" três vezes, quando lhe perguntaram se era amigo dO Cara (e quem era besta de encarar os romanos naquela época?). Então, ele foge. Pedro fugiu, todo o mundo se escafedeu e largou Cristo pra lá. Lázaro também fugiria. Impossível saber por quê ou de quê. Medo, vergonha? Se vc leu O caçador de pipas, deve ter percebido que a gente tende a (se) afastar (d)aquilo que nos lembra nossos erros. Talvez isso tenha acontecido ao nosso Lázaro. Envergonhado por não ajudar aquele que lhe devolvera a vida, ele foge. E, pelo visto, foge para outro tempo. Através dos tempos, sempre vamos encontrar lázaros mal-agradecidos. Mas aquilo de que ele fugia (sua covardia, p. ex.) vai estar sempre com ele. Será sua tradição e maldição. É num tempo não bíblico, portanto, que seu passado, quando ele talvez já não se recordasse dele, o reencontra, na figura de Cristo. A identificação com o personagem bíblico só ocorre nos diálogos com Jesus porque talvez esse Lázaro amedrontado que depara com seus próprios receios seja uma metáfora de todos aqueles que, ao longo da vida, se escondem quando deveriam estar à vista.

Engraçado é que ninguém se pergunta que fim levou esse personagem bíblico, para mim tão enigmático e importante quanto Judas.

A questão do tempo, veremos a seguir. Parte II vem aí.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Dies irae

Era Natal. Portanto, enfiou o presente debaixo do braço e retificou o pretérito, colando-o às suas costas. Na estrutura mal-ajambrada do corpo, pesadas reticências e abismos desconhecidos, feridas que não secavam. Masturbava-se regularmente. Às vezes, sonhava. Às vezes, limitava-se a ter apenas poluções diuturnas. Tudo dependia de seu estado de humor.

Cruzou a avenida. Do outro lado, os transeuntes ficaram diferentes. Um amontoado de roupas e passos apressados, poliacrômicos.

No semáforo seguinte, voltou para o lado anterior. As calçadas apinhavam-se de mendigos e leprosos, doentes de toda espécie, à espera de um milagre. Estranhou que não visse nenhum Cristo.

De repente, percebeu que as pessoas passaram a olhá-lo, espantadas: Como ousa portar o momento sob a axila? Algumas delas quiseram apedrejá-lo, mas ele seguiu seu caminho, indiferente. Se tinha mesmo o momento, como diziam, quem haverá contra mim?

Atirou uma esmola impassível ao pedinte mais próximo e contemplou a sua boa ação do dia com indisfarçável orgulho e uma crescente sensação de poder. Deveria ter continuado a ser escoteiro. Bobagem, escoteiros não fumam.

Súbito, eis que se depara com Cristo. Recém-saído do útero do esgoto, o Mestre tinha suas longas vestes brancas muito sujas e os cabelos e a barba apinhados de carrapatos e piolhos. Fedia a quilômetros, mas, definitivamente, era o Cristo. reconheceria aquelas chagas abertas em qualquer lugar onde tornasse a vê-las.

— Com que, então, fugiste ao Tempo, Lázaro? — Jesus se recuperou da surpresa antes e falou primeiro.

— Mas este não é o Tempo, Senhor? — Lázaro retrucou.

— Por que me abandonaste, Lázaro, se sabias que eu não era homem, se sabias que eu não era tanto?

Lázaro tremeu:

— Mas, Senhor —, repetiu — este não é o mesmo Tempo?

Cristo espumava de raiva:

— Custei a encontrar-te, Lázaro, porque fugiste com o Tempo. Fugiste covardemente, deixando-me aos cães e aos centuriões. Precisei de ti e não testemunhaste por mim.

Lázaro estava apavorado, mas ainda tentou algum argumento:

— Senhor, não é minha culpa que... — e interrompeu a frase ao ver que Cristo arrebanhava o cassetete de um guarda próximo e se preparava para exercer sua autoridade.

E Cristo batia e batia e batia, munido de sua divindade borrachuda, até que Lázaro caiu, em estado de sangue, e, como tal, alastrou-se pela calçada, sujando os sapatos dos que passavam.

O povo aplaudiu. Sob a ovação, Cristo subiu aos céus, sentindo-se Deus.