segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Dies irae

Era Natal. Portanto, enfiou o presente debaixo do braço e retificou o pretérito, colando-o às suas costas. Na estrutura mal-ajambrada do corpo, pesadas reticências e abismos desconhecidos, feridas que não secavam. Masturbava-se regularmente. Às vezes, sonhava. Às vezes, limitava-se a ter apenas poluções diuturnas. Tudo dependia de seu estado de humor.

Cruzou a avenida. Do outro lado, os transeuntes ficaram diferentes. Um amontoado de roupas e passos apressados, poliacrômicos.

No semáforo seguinte, voltou para o lado anterior. As calçadas apinhavam-se de mendigos e leprosos, doentes de toda espécie, à espera de um milagre. Estranhou que não visse nenhum Cristo.

De repente, percebeu que as pessoas passaram a olhá-lo, espantadas: Como ousa portar o momento sob a axila? Algumas delas quiseram apedrejá-lo, mas ele seguiu seu caminho, indiferente. Se tinha mesmo o momento, como diziam, quem haverá contra mim?

Atirou uma esmola impassível ao pedinte mais próximo e contemplou a sua boa ação do dia com indisfarçável orgulho e uma crescente sensação de poder. Deveria ter continuado a ser escoteiro. Bobagem, escoteiros não fumam.

Súbito, eis que se depara com Cristo. Recém-saído do útero do esgoto, o Mestre tinha suas longas vestes brancas muito sujas e os cabelos e a barba apinhados de carrapatos e piolhos. Fedia a quilômetros, mas, definitivamente, era o Cristo. reconheceria aquelas chagas abertas em qualquer lugar onde tornasse a vê-las.

— Com que, então, fugiste ao Tempo, Lázaro? — Jesus se recuperou da surpresa antes e falou primeiro.

— Mas este não é o Tempo, Senhor? — Lázaro retrucou.

— Por que me abandonaste, Lázaro, se sabias que eu não era homem, se sabias que eu não era tanto?

Lázaro tremeu:

— Mas, Senhor —, repetiu — este não é o mesmo Tempo?

Cristo espumava de raiva:

— Custei a encontrar-te, Lázaro, porque fugiste com o Tempo. Fugiste covardemente, deixando-me aos cães e aos centuriões. Precisei de ti e não testemunhaste por mim.

Lázaro estava apavorado, mas ainda tentou algum argumento:

— Senhor, não é minha culpa que... — e interrompeu a frase ao ver que Cristo arrebanhava o cassetete de um guarda próximo e se preparava para exercer sua autoridade.

E Cristo batia e batia e batia, munido de sua divindade borrachuda, até que Lázaro caiu, em estado de sangue, e, como tal, alastrou-se pela calçada, sujando os sapatos dos que passavam.

O povo aplaudiu. Sob a ovação, Cristo subiu aos céus, sentindo-se Deus.

4 comentários:

Anônimo disse...

Olá!
Lido algumas partes do livro "Os mortos estão no living" percebi algumas caracteristicas do Simbolismo (aliteração; senestesia) e, claro, do Modernismo (ironia; cotidiano). Gostaria de ser informada se ao afirmarem que o livro é uma passagem do Simbolismo para o Modernismo estaria correto.
Abraços,
Joanna Miguel

OBS: A propósito, o bolgger está muito legal! Parabéns!!!

Miguel Marvilla disse...

Joanna, ao escrever o livro eu não tive essa preocupação de detalhar o que era Simbolismo, o que Modernismo ou qualquer outro "ismo". O que posso te dizer é que já li obras de todas as épocas e, sim, em tudo que escrevemos, ficam fragmentos do que lemos. Não creio que perguntem, como vc sugere, se o meu livro representa uma passagem do Simbolismo para o Modernismo. No entanto, se perguntassem isso a mim, eu diria que até é possível que sim, mas que não foi minha intenção nem me parece que a tônica dele seja essa.

Não se preocupe com o que podem pedir na prova (três anos atrás fizeram uma questão de Química com um poema meu). Antes, tente a leitura de todos os livros pedidos como forma de aprimorar seu pensamento, de conhecer outras idéias, algumas até antagônicas às suas. Procure o conteúdo dos livros, mais do que essas possíveis relações entre estilos de época: embora elas sejam também importantes e estejam presentes em todas as obras, a maioria dos autores escreve para exteriorizar o seu modo particular de ver o mundo.

As características a que vc se refere em seu comentário, talvez sejam reflexo da minha poesia. Os mortos estão no living contém muitos elementos poéticos que me são muito caros, entre os quais os que vc apontou. Eu diria mesmo que ele é quase um livro de poesia. Mas essa é outra história... Gostei muito das suas observações e da sua pergunta.

Abraços e boa sorte no vestibular.

Guilherme Daher disse...

Confesso que não entendi muito esse conto.Reconheço as figuras bíblicas de Lázaro e , logicamente ,o própio Jesus, e uma ironia quanto sua ascensão("Cristo subiu aos céus, sentindo-se Deus."
)Porém , quando li esse conto acho que não consegui realmente entender seu sentido. Fico com a sensação de um texto surralista.

Pesquisei o significado de " Dies Ares". "Dia da ira" se trata de hino latino que retrata o Julgamento final , o que de certa forma se relaciona com texto.
Então,se você puder ,ajude-me a entender melhor o conto respondendo a estas perguntas:
1) No trecho "Como ousa portar o momento sob a axila?" , o que seria esse momento?
2)Por que Lázaro insiste em aquilo ser realmento o tempo?
3)"(...)Deveria ter continuado a ser escoteiro(...)".Por que Lázaro parece ser uma pessoa que vive no nosso tempo , dadas as características inicias do texto,sendo só identificado com a figura bíblica nos diálogos com Jesus?

Obrigado.
Ps:Muito bom o blog. Comentar nele e discutir com o própio autor o seu livro é algo inacreditável.
^^

Miguel Marvilla disse...

ESPAÇO RESERVADO PARA RESPOSTA (SE HOUVER) EM PLENO DOMINGÃO. GÜENTA AÍ, GUILHERME...