sábado, 29 de setembro de 2007

Resposta para o Guilherme Daher, parte II

A questão do tempo em "Dies irae", creio dizer respeito ao distanciamento entre um Lázaro ingrato e um Cristo simultaneamente humano e divino (ou pretensamente divino). Lázaro portar o momento sob a axila é reflexo imediato do tempo que ele vive. É Natal. No Natal, as pessoas andam apressadas, muitas vezes com presentes debaixo do braço. O trocadilho foi inevitável: “Era Natal. Portanto enfiou o presente debaixo do braço [...]”, presente tanto representando qualquer coisa que se dá ou concede a alguém, inclusive dádivas e dons, segundo o Houaiss, quanto o instante atual. Lázaro fugiu com o tempo (o que pode ser interpretado como a reprodução ad infinitum de características desabonadoras da humanidade, tais como a ingratidão), fugiu com a única coisa de que Cristo talvez precisasse, e, quando este o encontra, ele não sabe explicar nem o que fez nem o que estava fazendo em um tempo que não era o seu. Não era? Ao longo da história, quantos Lázaros não existiram? Quem de nós pode jogar a primeira pedra?

Cristo está furioso. Na verdade, essa é uma característica das mais humanas em um Deus que se faz homem. Não apenas a substância carne de que é composto, mas o espírito humano é que o caracteriza — e engrandece. Cristo fica furioso com os vendilhões do Templo, lembram-se?, e os expulsa a chicotadas. Cristo ficaria, sim, furioso, ao reencontrar aquele a quem salvara e de quem, em vão, necessitara. A Bíblia não diz nada disso (exceto a surra nos vendilhões), mas nós podemos imaginar tudo isso. Então, podemos imaginar tb que, quando Cristo surra Lázaro até a morte (tomando, por fim, a vida que lhe devolvera), o povo imagine que ele apenas está fazendo o que qualquer um faria, punindo um infrator, restabelecendo a ordem (uma ordem) das coisas. Já não nos cansamos de achar que a polícia ou qualquer um que represente a autoridade policial, por exemplo, tem, sim, de agir com violência, de eliminar o marginal? Vingança executada, portanto, sob aplausos do povo, Cristo pode, enfim, sentir-se Deus e subir aos céus.

Ou não?


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PS: O conto faz uma descrição naturalista de Cristo: sujeira, barba por fazer, piolhos, carrapatos. Parece-me muito mais justo imaginar que, em uma região de negróides, como a Galiléia, não existiria um Cristo como o pintou o imaginário medieval europeu: branco, de olhos claros, limpo etalvez cheirosinho. Cristo não era humano? Então. O lugar não tem água e, pra piorar, é tremendamente empoeirado: o deserto está ali, à porta. Na época do Império Romano, banho se tomava muito raramente: nossos modernos ideais de assepsia não eram sequer sonhados. Então, a figura de Cristo — ou a de qualquer pessoa — tem necessariamente de levar em conta o ambiente e o comportamento da época. Eu me arrepio imaginando, principalmente, o cheiro das pessoas (tenho horror a gente fedorenta). Devia ser complicado até pra transar... Talvez por isso não houvesse explosão demográfica. Tenho uma teoria: a população começou a crescer depois da invenção do banho com sabonete...

Um comentário:

Mi disse...

Engraçado. Bom ter lido isso aqui. Eu li o conto algumas vezes. E iria hoje, antes (no caso, agora, depois) de ler comentários aqui, pensar e repensar relações. O fato é que, acima das relações e referências bíblicas, eu não iria pensar o Lázaro e o Cristo naquela época. Pensaria o lugar-comum (e o que se tem por aí de informação) para relacionar à tal literatura atual. A sujeira de Cristo seria associada a outras coisas... (claro que poderia partir daquilo que você disse no comentário sobre no post em questão) certa degradação, inversão do que se tem como conceito aí, crítica à crença, necessidade de 'morte' de certos pressupostos - já que temática constante do conto. [penso agora no Lázaro que 'levantou da morte' e porta o momento para si, deixando Cristo 'na mão', que sobe ao céus, sentindo-se Deus, depois de se viongar daquele que ele livrou da morte]. Isso tudo, claro, se eu (como pretenderia) considerasse tempos atuais: esse Cristo em tempos atuais, sujo daquele jeito, vindo do ESGOTO (que naquela época não exisitia), poderia referenciar-se não à falta de higienização da época, mas a outra falta de higienização de um 'não-sei-o-que-ainda-não-mem-pergunte-agora', a inevitabilidade da sujeira. Porque as chagas precisam ser reconhecidas sob a camada suja? Só as chagas (maiores que a sujeira) ainda referenciam-se a esse Cristo, que não é mais aquela imagem de Cristo, inevitavelmente desfigurado (não necessariamente do modo bíblico, tomado por torturas, mas desfiguradamente Cristo, assoberbado e irado etc).

Fatalmente eu iria observar o 'tom de autoridade' de Cristo, comparando com regras, repressões. E talvez esse TEMPO eu pensaria [digo neste tempo verbal, porque ainda não comecei a elaborar nada sobre, só uns perdidos sem muita relação. Talvez volte aqui], aproximando o tal Lázaro ao povo mesmo, como disse Daher. E por que não pensar um anacronismo estranho que se vive? Deus e Lázaro em plena modernidade. Além disse, como você colocou, quantos Lázaros e quantos 'die irae' que temos por aí, ao longo dos tempos.

(...)

Bom, escrevi até demais.
Estou a ler/reler, certamente pentelharei mais, após refletir melhor este (e outros) conto.