sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O vampiro, segundo a vítima



Para Luciane F.

Ela ouviu os dentes afiados rangendo na pele, explorando a carne, explodindo a artéria e disse para si mesma que a paz é viscosa e doce como leite condensado, e vermelha.

Usava uma camiseta muito justa, que mal conseguia conter os seios em sua ânsia de fuga, e um fio de sangue começou a correr por entre eles, unindo-os, mais um afluente da sua emoção.

Numa quarta-feira sombria


Passou a andar de costas, com medo de encarar o tempo. Talvez por isso não se saiba exatamente quando desabou. Alguns dizem ter sido numa noite farta, com os telhados das casas retinindo de lua, que o asco represado atravessou-lhe a garganta, feito lâmina de aço. Então, o corpo teria sido sacudido violentamente, as mãos tentando ainda reter a vida que lhe fugia, os pulmões explodindo, e só foi encontrada na manhã seguinte, junto a uma poça de vômitos os mais díspares: poesia, ócios, ódios, limites, entre restos coagulados de uma lucidez perplexa, como se tudo que descobrira fosse bile.

Não havia pistas nem explicações plausíveis, nada sobre o que especular, ao lado do corpo.

Os jornais nem deram a notícia.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O homem, a estrada


O homem está nesta estrada, neste instante. Não há como falar o que se está vivendo, os verbos não cabem no momento.

Pergunta-me — tenta — algo. É, neste tempo irremovível que nos une, o fio da navalha: a pele, maravilhada pela expectativa do corte; a artéria, ilustrada de sangue, que pulsa, pulsa, indefinidamente. Mas o homem, neste espaço imensurável de tempo que nos separa, torna a se retrair. E sua luz não é mais que a luz normal de todos os homens, iguais e inapeláveis em seu fazer humano.

Lúgubre. É assim esta paisagem que nos contém enquanto caminhamos e que se modifica a cada minuto novo, aleatoriamente, independente de nós, que somos parte dela. Então, pensamos (e, com isso, nos aproximamos outra vez) o quanto não somos o que queríamos ou poderíamos ser. O que fizemos aos outros, o que nos fizeram, em tudo nos parecemos — eu e ele —, até que nos encontramos, díspares, aqui. Ambos nos sabemos, ambos nos esquivamos, ambos nos queremos.

Eu poderia chamá-lo e ao mistério que tão bem o porta. Poderia, se desejasse, beijá-lo, cortar-lhe as orelhas, torná-lo palpável. Contudo, se ele fugisse, quem me acompanharia nesta caminhada que parece nunca terminar?

[Aproximo-me dele.]

Ai, preciso ao menos tocá-lo brevemente. E se ele se desvanecer? E se este lugar se tornar de noite e eu não souber mais o rumo a seguir? Outros já devem tê-lo feito antes de mim. É por isso que esta estrada está assim, cheia de cadáveres carpidos por estrelas silenciosas, porque o tocaram. Ousaram tentar o proibido. Mas só um fio de cabelo!? Quanto de escuro, de perdição, haverá nisso? [Já sinto sua respiração. Ele me olha fixamente. Tem a impressão de saber o que vai acontecer. Estará imaginando um modo de escapar?] E eu? Qual de nós, nesse jogo de toques, se perderia? Quanto de nós ficaria nesta rota, com buracos negros em lugar de olhos, noite em vez de pele e veias lácteas em lugar de sangue? [Paro. Pára. Não vai — não, não vai — resistir. Talvez seja isso que o move, não resistir.]

Não cederei. Há muito venho me gastando aos poucos, por que vou me gastar agora, inteiro, de uma só vez? De qualquer modo, terei outras chances, pois ainda falta muito para o fim-não-se-sabe-onde deste caminho. Para ele, não. Para ele não há riscos. Surgiu do vazio, apareceu de repente. Está aqui apenas porque estou, significa algo por minha causa, e só está andando paralelo a mim porque vou devagar. Basta que me apresse um pouco, para livrar-me dele.

[Eis que ele me olha de novo. Vai dizer alguma coisa? Confesso que ainda não me acostumei totalmente com isso. Acabo sempre tendo certo medo, vindo de não sei qual recôndito de mim. Será que ele já percebeu o que vai acorrer? Parece estar mais rápido. Aperto o passo.]

Irei à frente dEle, assim não terei de me preocupar mais com a tentação de tocá-Lo. E, se Ele se perder por aí, melhor. É uma companhia muito calada mesmo...

Pronto. Já não O vejo mais. À minha frente, apenas a paisagem em seu leque de coisas. Respiro. Os elementos e suas normalidades. Respiro.

Por que este ar carregado, de súbito? E este algo de eletricidade na espinha? Às minhas costas não há nada, exceto o terreno já percorrido. O céu está límpido, nenhuma possibilidade de tempestades repentinas, mas... estas mãos! Não são as minhas! E não é minha esta língua, nem minha esta boca e nem é minha pele, esta sobre não-meus ossos. Não são estes meus pensamentos! Não sou eu, este em mim!

E quem é aquele que vai em meu corpo, quase longe, desaparecendo na curva, lá na frente?