segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O homem, a estrada


O homem está nesta estrada, neste instante. Não há como falar o que se está vivendo, os verbos não cabem no momento.

Pergunta-me — tenta — algo. É, neste tempo irremovível que nos une, o fio da navalha: a pele, maravilhada pela expectativa do corte; a artéria, ilustrada de sangue, que pulsa, pulsa, indefinidamente. Mas o homem, neste espaço imensurável de tempo que nos separa, torna a se retrair. E sua luz não é mais que a luz normal de todos os homens, iguais e inapeláveis em seu fazer humano.

Lúgubre. É assim esta paisagem que nos contém enquanto caminhamos e que se modifica a cada minuto novo, aleatoriamente, independente de nós, que somos parte dela. Então, pensamos (e, com isso, nos aproximamos outra vez) o quanto não somos o que queríamos ou poderíamos ser. O que fizemos aos outros, o que nos fizeram, em tudo nos parecemos — eu e ele —, até que nos encontramos, díspares, aqui. Ambos nos sabemos, ambos nos esquivamos, ambos nos queremos.

Eu poderia chamá-lo e ao mistério que tão bem o porta. Poderia, se desejasse, beijá-lo, cortar-lhe as orelhas, torná-lo palpável. Contudo, se ele fugisse, quem me acompanharia nesta caminhada que parece nunca terminar?

[Aproximo-me dele.]

Ai, preciso ao menos tocá-lo brevemente. E se ele se desvanecer? E se este lugar se tornar de noite e eu não souber mais o rumo a seguir? Outros já devem tê-lo feito antes de mim. É por isso que esta estrada está assim, cheia de cadáveres carpidos por estrelas silenciosas, porque o tocaram. Ousaram tentar o proibido. Mas só um fio de cabelo!? Quanto de escuro, de perdição, haverá nisso? [Já sinto sua respiração. Ele me olha fixamente. Tem a impressão de saber o que vai acontecer. Estará imaginando um modo de escapar?] E eu? Qual de nós, nesse jogo de toques, se perderia? Quanto de nós ficaria nesta rota, com buracos negros em lugar de olhos, noite em vez de pele e veias lácteas em lugar de sangue? [Paro. Pára. Não vai — não, não vai — resistir. Talvez seja isso que o move, não resistir.]

Não cederei. Há muito venho me gastando aos poucos, por que vou me gastar agora, inteiro, de uma só vez? De qualquer modo, terei outras chances, pois ainda falta muito para o fim-não-se-sabe-onde deste caminho. Para ele, não. Para ele não há riscos. Surgiu do vazio, apareceu de repente. Está aqui apenas porque estou, significa algo por minha causa, e só está andando paralelo a mim porque vou devagar. Basta que me apresse um pouco, para livrar-me dele.

[Eis que ele me olha de novo. Vai dizer alguma coisa? Confesso que ainda não me acostumei totalmente com isso. Acabo sempre tendo certo medo, vindo de não sei qual recôndito de mim. Será que ele já percebeu o que vai acorrer? Parece estar mais rápido. Aperto o passo.]

Irei à frente dEle, assim não terei de me preocupar mais com a tentação de tocá-Lo. E, se Ele se perder por aí, melhor. É uma companhia muito calada mesmo...

Pronto. Já não O vejo mais. À minha frente, apenas a paisagem em seu leque de coisas. Respiro. Os elementos e suas normalidades. Respiro.

Por que este ar carregado, de súbito? E este algo de eletricidade na espinha? Às minhas costas não há nada, exceto o terreno já percorrido. O céu está límpido, nenhuma possibilidade de tempestades repentinas, mas... estas mãos! Não são as minhas! E não é minha esta língua, nem minha esta boca e nem é minha pele, esta sobre não-meus ossos. Não são estes meus pensamentos! Não sou eu, este em mim!

E quem é aquele que vai em meu corpo, quase longe, desaparecendo na curva, lá na frente?

10 comentários:

Anônimo disse...

Miguel Marvilla estou adorando o livro Os mortos estão no living. Resolvi algumas questões da UFES 2007 e 2008 à cerca do livro. Este ano estou preparando-me para o vestibular e um dos livros que estou lendo é o seu. Muito bom. Você poderia fazer algum comentário ou postar algo sobre os contos: " O vampiro, Deborah" e o conto: "Maria, Clara, Lia, Suzana", onde fala sobre a chuva de cadáveres que incomodam a vizinhança...
Valeu, obrigado...

Miguel Marvilla disse...

Agostinho, vou te dever um comentário sobre "Maria, Clara, Lia, Suzana" até o fim de semana. Qt a "O vampiro, Deborah", já existem alguns comentários na postagem, que talvez te sirvam. Mas vou tentar falar um pouco mais no fds.

Hugs,

MM,

Anônimo disse...

Caro Miguel...
Mais uma vez obrigado pela dedicação em disponibiliza os comentários. Você disse sobre os trechos de "O vampiro, Deborah" não consegui encontra-los, mas vou continuar tentando... Agora a história de Maria, Clara, Lia e Suzana é muito boa.
Li no blog sobre a duebidade do título, mas acredito que no vestibular eles irão enfocar mais sobre trechos de contos.
Valeu mais uma vez!

Anônimo disse...

Olá Miguel...

Procurei mais atentamente no blog e consegui encontrar algo relacionado aos contos:"O vampiro, Deborah" e "Maria, Clara, Lia e Suzana". Gostei muito da metáfora (se essa é a figura de linguagem adequada) sobre a expressão "chuva de cadáveres" isso relaciona ao nosso cotidiano de forma bem clara. Eu associo essa "chuva de cadáveres" com os assassinatos e acidentes, mortes enfim. A janela seria algo como se fosse a televisão, o rádio e a TV, onde faz uma conexão entre as notícias de morte com nós, que no caso somos aqueles vizinhos do conto que vc escreveu... Hahahahaha viajei total!!!
Como eu consegui encontrar os contos que eu estava procurando, se você quiser poderia escrever algo sobre "Julia D.: o banho" não consegui encontrar sobre ele no blog.
Outra coisa que eu acho interessantíssimo no livro é o parecer dele com o filme os "Os outros", aliás o filme que é parecido com sua obra, já que vc a escreveu na década de 80. O conto "Os mortos estão no living" em que os mortos não percebem que já morreram me lembra muito o personagem de Nicole Kidman. O filme é bem bolado e o seu livro também. Acho interessante inverter esses papéis, onde os mortos têm medo dos vivos.
Mais uma vez, quero deixar o meu muito obrigado.

Miguel Marvilla disse...

OK, Agostinho. Vou tentar postar algo sobre "Júlia. D.". Achei interessante a relação que vc faz entre o meu conto e o filme "Os outros". Acho que a relação procede, embora no filme, pelo que me lembro, a personagem de Nicole Kidman tem consciência de que está morta. O espectador é que não sabe disso. Ou não? Sei lá, acho que preciso ver o filme de novo pra não falar besteira. É uma grande obra.

Um abraço. E obrigado por suas palavras.

PS: Sua interpretação de "Maria, Clara, Lia, Suzana" faz sentido, ainda que não tenha sido essa a minha intenção. Mas, como diz Umberto Eco e eu repito ad nauseam por aí, "entre a intenção do autor e a intenção do leitor existe a intenção do texto".

Mad Cientist disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Miguel
No filme dos outros nem o público e nem os personagens sabem que são mortos. Os outros na verdade, são os vivos.
Tanto os personagens, quanto os leitores pensam que eles são pertubados por espíritos. É uma inversão muito interessante. E considero o filme "Os outros" fantástico. Os empregados mortos tentam fazer a personagem da Nicole entender que está morta. Tanto que ela protege os filhos da luz do sol devido à doença deles. Ela age como estivesse viva. Na verdade, ela matou os filhos e depois se suicidou.
O livro "Os mortos estão no living" é interessante nesse aspecto, pois trata a morte como algo natural.
Obrigado...

Miguel Marvilla disse...

Boa, Sandra! Eu vi o filme há tanto tempo q nem me lembrava mais dos detalhes. Mas vc tem razão: é um grande filme. Não à toa o diretor de "Os outros", Alejandro Amenábar, fez tb um filme que eu considero genial: "Mar adentro". Vc viu? É a história de um homem que fica tetraplégico luta 30 anos pelo direito de morrer. Agora, essa conversa toda de filme me deu vontade de assistir a "Os outros" de novo...

Apareça mais. Cinema é um dos meus assuntos favoritos, embora não seja necessariamente o tema deste blog perdido nos confins do Google.

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João Paulo, a dica que dou a quem quer publicar um livro é que, primeiro, escreva o livro. Se as editoras não quiserem publicá-lo (e, na maioria das vezes, elas não querem), vc tem hj o maior veículo de comunicação nas mãos: a internet. Então, publicar é fácil. Já ganhar dinheiro com isso...

Um abraço.

Anônimo disse...

Miguel tinha até esquecido de te falar: quando fiz a UFES pela primeira vez em 2004, foi cobrado um livro seu sobre o poeta que tentava se suicidar com veneno, mas, abria a janela e tirava essa idéia da cabeça. Muito interessante o livro. Na época eu nem tinha estudado para o vestibular, muito menos tinha lido o livro. Mas, acertei a questão referente ao livro. Também analisei as questões sobre "Os mortos estão no living" dos vestibulares passados, e achei tranquilo. Geralmente eles perguntam sobre os contos.
O que mais complica para mim é a escrita. Isso me preocupa. Quanto mais eu leio, mas dificuldades eu encontro com a coesão com a coerência. Estou lendo manuais e mais manuais de redação. Quando eu nem conhecia as práticas de redação, eu tirei 95 na redação do ENEM. Quando comecei a estudar melhor a organização as palavras, eu comecei a cair, obtendo notas como 70 e 50. Isso ocorre é que eu fico como se fosse decorando regras e na hora de construir um texto seja em prova ou até mesmo em uma atividade eu fico todo confuso. Eu observo muito no seu jeito de escrever nas opiniões do blog e começo a observar os recursos textuais que você utiliza.
Obrigado....
Até o vest UFES

Miguel Marvilla disse...

Agostinho, escritor é quem rompe regras de escrita (e cria outras no lugar), não quem segue essas regras. Os que apenas seguem regras são escreventes. Abandone sua preocupação com as fórmulas e faça mais do que já está fazendo: leia. Vc vai internalizar estilos, ritmos, idéias, vai mesclar isso tudo e criar o seu próprio modo de escrever. Quem lê pode até não escrever, mas quem não lê, com certeza não é capaz de escrever.

Boa sorte no VestUfes.