sábado, 15 de dezembro de 2007

Os fetos, as begônias

Os mortos vão bem, guardados na terra

Que os aquece e os mistérios lhes encerra.

— Paul Valéry


Não eram pó, ao pó não tornariam. Eram carne, sangue, sexo de seu sexo, mesmo assim, munidos que estavam de a-feições, divinos divididos filhos do falho útero de Deus. Eternally.

Foram recusados sete vezes e sete vezes sete seriam ainda expulsos do convívio com a Divindade, antes de apreenderem por experiência própria que não eram tantos, mas um, que se desdobrava, de forma que achou melhor conservá-los à parte uns dos outros para que não se reunissem de novo e não se multiplicassem, fazendo com que a noite desça sobre o mundo, e se rasgue o véu do tempo, e não se veja mais o dia.

O cheio acre a formaldeído, inundando o âmbito em que os deixava. Ficariam ali, no escuro, donos incontestes de seus quase gestos e de suas quase formas peculiares, transpirando seus desejos, ruminando suas limitações e seus ódios, mas cada qual à parte, patente em sua redoma de vidro e formol. Ele viria toda noite. Sabia acalantos vários e dispunha de notas suficientes para niná-los eternamente.

Eles não chorariam, tinha certeza, e não sentiriam fome, mas, até se sentissem, isso já estava previsto: comeriam os próprios estômagos, de maneira que o espaço que ocupavam não careceria jamais de amplidão, pois o que crescessem além do possível serviria para, amputado, alimentá-los. Eles concordariam.

A mulher não saberia de nada. Ela, além do mais, teria de compreender se soubesse. Mesmo porque, se fizessem tudo certo, não haveria pânico na vizinhança, nem explicações à polícia, nem jornalistas à porta. Nada poderia denunciar a existência dos fetos nos vidros de formol, porque suas raízes foram fixadas bem fundo. Os fetos não se incomodariam, certamente, de nunca mudarem de lugar. Melhor para eles, que permanecessem quietos nessa superfície escura do que se tivessem que disputar seu espaço na umidade do subsolo com as formigas e os escorpiões.

Pensando assim, ele cimentou a base dos vidros, para que vento algum os derrubasse (seria uma lástima ter embriões vagando pela casa, cobrando seu dasein, poderiam espantar as visitas) e se foi, fechando a porta, devagar, para não acordá-los, agora que descansavam.

E ele vinha, como prometera, todas as noites, por desencargo de consciência ou por amor. Até que, sem explicações, não veio mais. E todo movimento cessou.


Então, guiando-se por um raio de sol incrustado em algum lugar, eles se ergueram, todos juntos, romperam a entrada da vagina e irromperam no jardim, misturando-se, verdes, às begônias.

2 comentários:

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

Adorei seu blog, é muito bom mesmo cou visita-lo outras vezesParabéns. meu blog é marthacorreaonline.blogspot.com

Miguel Marvilla disse...

Obrigado, Martha. Visitar-nos-emos freqüentemente, então.