Para Bernadette Lyra
Dormitavam ambas, indeléveis, esquecidas num tempo sem paisagens, nem rumores, nem pretensões de ocasião. Um camaleão policrômico penetrou por uma fresta mal apagada, cobiçou-as e, só então, ousou adentrar-lhes as fraldas e os momentos.
— A tua boca não é deste mundo.
O teu suor não cabe o teu ser.
O teu olhar nos fere tão fundo!
Que face é essa que vens nos mostrar?
A primeira delas, parecendo que já o esperava, interrogou-o quando ele mal levitava sobre suas ancas. A segunda, nem bem a outra terminou e já perguntava, completando a idéia que ficara no ar, feito um jogral, com estrelas onde haveria olhos belos e inquisidores:
— Que pasmo é esse que vens nos trazer?
Que espasmo é esse que vens nos roubar?
De onde é teu cheiro, teu cuspe, teu gosto,
que contas as gotas do nosso calar?
O camaleão policrômico, apanhado desprevenido, pendurou-se pelo rabo numa viga do teto e cantarolou um acalanto, evasivo. Ficou olhando à distância os seios imaculados e sutis que elas lhe proporcionavam, com a vontade de tê-los que as pessoas têm quando com saudades. Mas não podia. A paixão, não lhe era dado conceber.
Disfarçou o êxtase crescente, espantando a lua, que espiava, curiosa, pelos buracos do vazio. Porém, logo voltou a desejá-las, elas que, sem pudor, lhe ofereciam corpos e insolitez nos gestos e nas palavras.
— Que amor é esse a nos tragar o porte,
a nos fugir ao tato, a nos ferir a noite?
— Que coisa é isso a nos lamber o corpo,
a nos trazer encanto, infâmia, mel e sal?
— Surgiu ao léu, já sabe a céu, saiu à mãe?
— Terá jardins, rua calçada, escada à lua?
— Que coisa é isso a nos tomar o espaço?
— Que coisa é isso a nos roubar ao sonho?
Uma falava com a boca da outra, suplicante. Supliciante. Ele não sabia qual delas desejar mais, não conseguia apreender o sentido exato do que ouvia. E via o sexo de ambas, que falavam por si, mas um pelo da outra, movendo-se lenta e docemente, vertendo os sons em longos suspiros de prazer e imoralidade. O camaleão policrômico não podia imaginar quanto tempo ainda conseguiria manter-se pênsil e distante: cada vez mais sensuais e febris, elas se acariciavam mutuamente e o chamavam, chamavam, chamavam:
— Por que não vens, se nos tiraste à sorte?
Por que não falas, se nos roeste o nó?
Ou não nos matas, se é desaguar, a morte,
de um instante em outro, adiante, e só?
Era um jogo da verdade e o camaleão policrômico, surpreendido nele, não podia mentir, de modo que rasgou um pedaço azul-solidão de sua pele e o engoliu, para se revigorar.
A que falara antes (qual?) estendeu a mão e tocou o local descarnado. Na obscuridade em que se encontravam, sentiu alguma cosia áspera, como uma casca de ferida, mas não retirou a mão. Ao contrário, trouxe a da companheira até a sua e implorou, ao mesmo tempo que se incorporavam uma à outra, em meio ao mar de lençóis, sangue, nácar e suor que se formou:
— Tira-me a pele, o meu jejum me dói.
Tira-me a vida, a lida, a ferro e dor.
Leva-nos longe, ao barro que constrói
a tua força e o teu ficar sem som.
Vencido, o camaleão policrômico desistiu do que viera fazer, sorriu, condescendente, de si mesmo e absorveu todas as luzes.
E instaurou-se a Escuridão.
4 comentários:
Não consigo entender o que significa esse camaleão policrômico, essas duas mulheres, que ora parecem irmãs, ora parecem amantes...
Alice, são 21h52. Volte aqui amanhã, no mesmo horário, e vou tentar esclarecer (ou confundir) alguma coisa. Mas, antes: o que te levou a pensar que elas possam ser irmãs? Essa possibilidade sua é muito interessante, abre novas janelas interpretativas...
Ah, não se preocupe muito com os meus significados. Veja as coisas com os olhos que vc tem... Confie no que vê.
Muito bom conto, pena que pouco exclarecedor.
Vejamos, no começo ele começa a ter sentimentos ? O que leva-o a isso ?
Ora, meu caro Ramon. Isso vc, em seu papel de leitor, é quem pode responder. Mas pense bem: o que leva alguém a ter "sentimentos"? De que sentimentos vc fala?
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