quarta-feira, 21 de março de 2007

Princípio de conversa - III

Títulos – II

Pois é. Mas aí notei que, ao utilizar a palavra “living” para determinar o local em que os mortos da família eram recebidos como visitas pela tal mulher, eu fechara o campo semântico da palavra. Ou seja, nesse contexto, living significava apenas living. Foi nessa altura do parágrafo que entrou em campo uma ex-professora minha do curso de Letras-Inglês. Com aquele seu habitual jeitinho todo meigo, a Lílian falou: “Que interessante! Os mortos estão NO living”... e disse um NOU tão categórico que eu até hj me pergunto como não me havia aventado essa possibilidade. Eu só via o NO como contração de em + o; a Lílian, americana e professora de Syntax and Semantics, viu como um advérbio de negação antecedendo um adjetivo (living: vivo, vivente) e dando-lhe a acepção contrária.

Dessa maneira, o título poderia ser rudemente traduzido como “Os mortos não estão vivos”. O que poderia soar meio tosco, por excessivamente óbvio, não fosse o fato de que passo o livro todo tratando deles como personagens que recebemos na sala, como personagens vivos. Porque a morte de que trata este livro não é apenas (ou nem é) a morte da carne, o corpo estendido no chão, caixões, velórios, enterros, coisas macabras (apesar de certa professora de um cursinho aí me acusar, à revelia, de ter escrito um livro lúgubre). A morte de que trata este livro é, na maioria das vezes, metafórica, mas disso falaremos em outra hora, quando alguém aí fora disser a palavra mágica “niilismo” — vão lá perguntar ao oráculo o que é isso, só pra adiantar o meio-de-campo.

Por agora, fica assim: um hipotético título como “Os mortos não estão vivos” contrapõe-se ao que o livro “prega” e até àquela idéia kardecista de uns parágrafos atrás. Mas isso torna a leitura mais instigante: a sua atenção se desvia, vc fica pensando que é uma coisa e é outra. Um título, afinal, como diz Umberto Eco (vão acostumando os ouvidos: vcs vão ouvir falar muito dele por aqui) deve desviar a atenção do leitor, não fornecer a ele uma chave. Daí que eu gostei mais ainda do título e fui dormir em paz. Deu pra entender, Akemi?

PS: Mas a idéia de que os nossos mortos (principalmente os metafóricos) estejam nos visitando, sentados na sala, tomando um suco de kiwi, enquanto nos esborrachamos pra entender o que acontece, é que move este livro. Afinal, nós somos o que fomos.

2 comentários:

Unknown disse...

Estou impressionada.
Em que você se baseou para escrever esse livro?
Fala de princípio niilistas e kardecismo. Gostei, diferente de tudo que já li por aí.

Miguel Marvilla disse...

Amanda, acho que a gente consegue fazer várias leituras do livro, inclusive essas. Algumas de nossas escolhas são inconscientes, mas acabam aparecendo para quem tem olhos dever, né? Confesso que não foram intencionais, certas opções. Elas acabaram se impondo. Naquela "brainstorm" (oba! finalmente achei um jeito de usar essa palavra) em que a gente se encontra quando cria algo, não é muito fácil pesar todas as palavras, verificar todas as hipóteses. Daí que acabamos dizendo mais até do que desejávamos. Então, niilismo, kardecismo, religiosidades escondidas, fantasias, romance, sexo, posições políticas, opções intelectuais, gostos, enfim, todas essas idéias que nos conformam, que dizem aos outros quem somos, acabam se misturando num caldo fantástico. Algumas escapam ao controle (a maioria, eu acho) e ficam por aí, zanzando, à espera de alguém que as reconheça... (Caraca! se isso não tem a ver com Platão também...) Por isso ninguém escreve apenas para si, por isso o leitor (pelo menos um) é fundamental: pra reconhecer (e capturar) as idéias que ficaram à solta.