terça-feira, 28 de outubro de 2008

Nenhuma mulher é Isabel

Para Maria Izabel


Não é de todo fundamental que seja alemão, o vinho, mas é imprescindível que se trate, no mínimo de um Qualitätswein mit Prädikat. Mozart tem de ser deixado ad libitum para que percorra o ambiente, penetre nas frestas menos aparentes dos armários e das estantes; para que passeie, claro e límpido, por entre as poucas palavras que encontrará pelo caminho; para que acompanhe a curva indelével dos seios sob a blusa de seda e se aconchegue quando quiser no matelassé. Porque deve ser uma noite densa e fria, talvez com fiapos de lua apegados a uma reprodução de Klimt (na impossibilidade absoluta de um original), ou com borboletas azuis pousadas na vidraça.

Mas nada de tangos, rumbas, coisas tristes ou violentas. O futuro, um carteiro retardatário, que não entre já com telegramas, encomendas do reembolso postal e sua pressa ininterrupta.

Sim, as mãos. Estas devem estar preparadas para suas possibilidades infindas de movimento, mas cegas a qualquer outra opção que não a suavidade, o penetrar macio através do mar profundo e resoluto dos cabelos, o molde do ombro, a linha irrepreensível as pernas, o quantum dos quadris.

As mãos, porque é necessária a tensão exata do arco nas cordas do violino, o andamento bem definido, a vigência precisa dos bemóis e sustenidos, a melodia executada com perfeição, para que sustente do ar o que por si só suspenso não poderia permanecer.

É permitido discorrer um pouco sobre a sensualidade possível dos vampiros, o êxtase calmo que aflora com o sangue, aos filetes, da jugular despedaçada. Admitem-se breves incursões por teorias neobehavioristas, pela antropologia medieval, por Galahad e Guinevere, a expansão do universo, as razões por que Eusébio de Cesaréia omitiu o nome de Cristo em De laudibus Constantini, o sistema métrico nepalês, por tudo que se queira, desde que nada seja vulgar: as palavras devem ter vida e gesto, cor, cheiro, sabor, e a medida justa para ocupar apenas o espaço a elas destinado no mosaico do silêncio.

Há que se encontrar aderido ao próprio ser dos objetos (e não só no lobo da orelha) um sutil aroma de Opium by Saint Laurent. Grave erro terá sido cometido, no entanto, se ele não puder se desgarrar das coisas em função de outro cheio qualquer que esta mulher possa preferir ou, principalmente, deste perfume que ela emana e que não é de nada que mortal algum tenha até aqui tocado ou concebido.

É de suma importância também que se declame, em voz baixa e rouca, um poema de García Lorca ou de Fernando Pessoa para esta mulher amada que se espreguiça docemente, sem se dar conta de que qualquer movimento seu desregula o mundo e é como girar um caleidoscópio: o móveis mudam de lugar, os lustres experimentam novas posições, as cortinas se transformam, e o mar lá embaixo deixa de ser mar para tornar-se em espectro, inexprimível por qualquer manifestação verbal ou escrita conhecida.

Música de dança. Tomá-la pela mão, cuidando em que os dedos não exerçam sobre a sua pele nem mais nem menos pressão do que a estritamente necessária à absorção do calor que ela desprende, ignorado de Celsius e Kelvin e Fahrenheit. Sentir o Danúbio, azul, deixando ao Reno e ao Mosela a tarefa de refletir o sol sobre os vinhedos de Baden, sobre as Riesling pretas de Würtemberg, sobre Rheinhessen e Mosel-Saar-Ruwer, mas trazendo consigo a própria essência romântica e distante dos Cárpatos e da Floresta Negra, para lançar-se aqui com o peso da sua história, a sinuosa beleza da sua forma e a impetuosidade de um crime passional.

Desde sempre, no entanto, está pronta uma hora em que o Danúbio se acalme, o feixe de laser retorne ao seu ponto de inércia no cedê, o que se ouve é o silêncio, a respiração dos amantes, misturada aos olhares que se atraem e aos lábios que se aproximam, de tal forma homogênea que não se sabe mais se respiram ou se apenas reaproveitam o ar que o outro devolve já utilizado, sem se importarem com a necessidade orgânica de renovação do oxigênio consumido, pelo simples prazer de morrer da mesma asfixia.

Acontece que não há tempo de parar para morrer. Não é essa, para nenhum dos dois, nem a ocasião nem a forma desejada da morte, de modo que ela se afasta, derrotada, com seu alfanje e seu manto escuro e pesado, em busca de outras vítimas.

Perguntar quem é esta mulher. “Isabel”, responde. Isso basta: a certeza de que nada mais existe de tão pleno e irresumível escreve-se na penumbra com sua tinta iridescente.

Isabel, Isabel, a palavra acabada de dizer muitifica-se, traz no bojo uma beleza mágica e megalítica, para muito adiante de Carnac e da simples vastidão da identidade. O que é esse nome que, de tão completo, é sua exata expressão, o objeto em si mesmo?

Isabel e, por sedução, blues. Josephine Baker levanta-se do túmulo trazendo consigo Alberta Hunter rediviva. Sentam-se ambas nas almofadas de cetim, conversando sobre St. Louis, Chicago, Paris, uma época em que ainda havia tempo para ser feliz. Elas parecem à vontade, proprietárias de uma era que Isabel não viveu, que não vivi, fantasmas de um teatro abandonado ao qual comparecemos inteiros em número grau e gênero sujeito verbo predicado, espectadores renitentes, na esperança de que os atores voltem ao palco, de que a cena se ilumine, de que o pano não tenha caído.

Alberta Hunter aproxima-se de Isabel, dentro dos olhos, vendo-lhe a alma, os desejos contidos. Com sua mão magra e delicada, segura-lhe suavemente o braço e completa com ela, em slow motion, o gesto que ficara por fazer, esquecido de se terminar, quando as descobrimos sentadas na sala como duas pessoas da família.

O gesto é o abraço, a carícia dos dedos irretocáveis na nuca exposta, e de tal importância que por ele dois fantasmas negros e ossudos atravessaram não apenas as fronteiras da casa e do país, mas, principalmente, a fronteira membranosa e úmida de dois mundos, o dos vivos e o dos mortos, para que pudesse não deixar de acontecer.

O resto é ritual. Navego o oceano interminável do colo no beijo sem pressa. O seio sob a seda lacerada por dez facas ávidas se dá por descoberto, a textura de pétala da pele revelando, enfim, sua trama.

No delta das coxas, Aracne tece sua teia. A teia me enreda. Entrego-me. Gloria victis.


O futuro, comme il fault, arromba a porta com seu dia cheio de notícias e urgência de acontecer. Josephine Baker diz adeus, Alberta Hunter diz adeus. Procuro Isabel no abraço vazio que me dou, em que ela nunca esteve. Há muitas mulheres no mundo e nenhuma delas é Isabel.


Do lado de fora, alguém atravessa a rua assobiando um rock new wave.

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