Todas as noites, o trem passava, desesperado, gritando as onze horas, e eu estava à janela, pensando devagar para não acordar os fantasmas da casa. Eva, absorta e tênue, acomodava-se melhor no sofá a cada vagão, até adormecer. O matraquear constante do relógio impregnava nas paredes nuanças de senilidade, uma senilidade branca, lustrosa, como nosso pasmo cotidiano.
Quando o trem findava de passar, era meia-noite e o seu desespero, como sempre, acabava fazendo parte de nossa própria fisionomia. Então, Eva se levantava, arrastando pesadamente os sonhos, deixava que uma lágrima, talvez de desejos não satisfeitos, talvez de premonição, lhe quebrasse a inércia do rosto e ia dormir no quarto dos fantasmas, sem dizer palavra.
Fora assim desde o princípio, mas, certa noite, percebi que alguma coisa pesada iria desabar sobre nós, porque o trem atrasou. O silêncio das onze horas, onde haveria seu grito inaugural, não-soou como uma explosão. Eva mexeu-se, inquieta e lúcida, no sofá, buscando uma posição que, pela primeira vez, nunca mais encontrou. Acabou ficando mesmo na vertical, murcha, o tempo enjaulado nela rastejando, pegajoso, sobre seu corpo, enquanto a lua deixava transparecer sua lividez sem ser interrompida pelos vagões do trem.
Eu estava entregue ao meu hábito de ficar à janela, mas podia sentir que algo havia mudado. Sabia que Eva, mais que qualquer um, agora fazia parte do relógio, integrando-se ao limbo das paredes. Do mesmo modo, sem precisar vê-la, eu não precisava ouvi-los para saber que conversavam como velhos amigos, ela e os fantasmas. Eles também haviam notado a diferença ocasional do silêncio e desceram para se convencer de que, de fato, existíamos e co-habitávamos pacificamente a casa que pertencera aos seus ancestrais desde idos tão remotos que mesmo a memória infalível dos fantasmas hesitava em afirmá-los categoricamente.
Durante toda a vida, eles tinham-se abstido da sala, limitando seus movimentos ao pretérito dos quartos e do sótão, mantidos lá por sua determinação de não misturar duas épocas distintas, a deles e a nossa, a fim de que pudessem ser preservados intactos os pensamentos e as emoções peculiares de cada geração que ocupasse a casa.
Nessa noite particular, porém, não havia um tempo definido, já que o trem atrasou, e fazíamos todos parte de uma mesma era, sem delimitações. Foi assim que eles se aventuraram ao desconhecido da nossa atmosfera e, grudando suas ventosas no corpo de Eva, ofereceram-lhe compulsoriamente um outro nível de vínculo com a realidade.
As coisas conhecidas, assim, ficaram diferentes, permanecendo iguais. Em determinado instante, notei que o relógio morrera completamente, embora ressuscitasse de imediato. Foi muito rápido, esse lapso temporal, mas, na pequena fração de segundo durante a qual a vida ficou latente, Eva se levantou, os fantasmas em volta, feito crianças na hora do recreio, e sobrevoou a sala (não continuava murcha. Pelo contrário, brilhava muito e parecia feliz como nunca), até que foi se tornando transparente, tr ns ar nt , t n a n , t , , e obrigou minhas retinas a abdicar de sua presença. Eu já não me espantava com nada, como se previamente advertido desses acontecimentos inusitados (porque, nessa noite, o trem atrasou). No entanto, tomou-me uma profunda sensatez de medo. O ambiente se tornara tão sutil sem a presença de Eva que ficou difícil encontrar os objetos em seus lugares. Quase podia enxergar-se o silêncio palpitante de cada coisa. Era isso que me assustava. Eu não estava preparado para conviver sem companhia humana com fosse lá o que fosse tão gigantesco e inabalável em suas possibilidades.
Nervosamente, comecei a rabiscar a quietude com uma canção antiga, mesmo sabendo que não ia conquistar o vazio, e Eva foi reaparecendo no sofá, impávida, de novo enrugada, como se nunca tivesse saído de lá.
Se pudesse prever o instante em que ela cairia do sofá, talvez eu pudesse também ter evitado o terror que se seguiu. Mas não. Distraído, com meu assombro interior, não fui capaz de perceber a real extensão do fato de sua cabeça haver-se partido de encontro ao soalho, a não ser muito depois, quando o veneno dos escorpiões começou a circular pelo meu sangue e tudo foi ficando escuro.
Eva estava, indiferente, jogada no chão, e já não tinha lábios, nem olhar, nem nariz, porque os aracnídeos que abandonavam às dezenas seu crânio rachado haviam devorado quase toda a sua carne e ela, agora, era só ossos, exceto pelo sexo, que eles desfiavam laboriosamente, fibra por fibra, como se toda a vida tivessem sido treinados para isso, para decompor seus átomos.
Pouco depois, numa nuvem negra, eles destruíam os móveis (alguns chegavam a brigar com suas próprias imagens nos espelhos pela ocupação do mesmo espaço) e, caminhando sobre a substância da minha aflição, escalavam meu corpo e me atacavam, vorazes.
A essa altura, inerme, eu suava tanto que alguns deles escorregavam pela minha pele. Mesmo assim, não desistiam de cravar-me seus aguilhões, disputando, cada vez mais ferozes, todo centímetro, toda glândula de um mim que já nem ouvia a dor e apenas fechava os olhos e deixava me arrancarem os pedaços, me levarem sabe Deus para onde.
De repente, não havia nem a sala, nem Eva, nem medo, nem Deus, nem nada, só os escorpiões. E eu queria que acabassem rápido com aquilo. (Mais e mais escuro, o planeta só fazia compactuar com o que acontecia.)
Um escorpião, pacientemente estacionado sob o meu nariz, aguardando uma melhor oportunidade para o ataque, percebeu quando, em minha agonia, abri um olho, pronto a me julgar morto, e, presto, cravou-me seu ferrão risonho através da córnea, até atingir-me o cérebro, amalgamando-se aos meus pensamentos embaciados.
Simultaneamente a outros escorpiões que penetraram por entre minhas costelas e devoravam meu coração, tornei a ouvir o trem. Talvez fosse muito tarde, mas clamei por Ele, meu último recurso, com o que me restava de forças. Éramos, eu sabia, os dois, os desesperados. Apesar disso, ele partiu em minha auto-defesa, gritando cada vez mais alto, mais Alto, mais ALto, mais ALTo, interrompendo a . . . . . l . u . a . . . . . a epaços regulares dos vagões, e gritando tão ALTO que espantou os escorpiões, suplantou a morte e tudo foi acontecendo ao contrário. Como um filme exibido de trás para diante, eles foram retrocedendo, assustados, devolvendo o corpo de Eva, até que voltaram para a cabeça dela, e ela, à sua posição inicial no sofá. O trem terminou de passar. A normalidade vítrea de sempre.
Mas, em algum não-movimento irretorquível, o trem se atrasara, isso era consumado.
Na noite do dia que se seguiu, quando esses fatos, diluídos pela isenção com que os analisamos à distância, assemelhavam-se a não mais que um pesadelo conjunto, Eva, sem dar sequer mostras de parecer lembrar-se do que houve, aninhou-se em mim, carente de afeição e sexo, e, beijando-me avidamente, como em tempos irretornáveis sem a proteção segura da memória, tragou-me para dentro de si.
Nesse momento, o macho aprisionado em suas entranhas, a pele lubrificada pelo prazer retomado, ela permitiu-se um sorriso, que ilustrou o quarto.
3 comentários:
A profundidade do conto e as sensações que ele causa suplanta a falta de recusos em editoração do blogger e que bom que existem livros.
Ainda bem que por mais um bom tempo ainda existirão livros de papel, "Anônimo"...
É verdade, q bom que existem os livros, é o q me salva muitas vezes.
Alguns poetas entao, nem se fala.
Cecília, Drummond e Quintana, meus eternos amigos.
Postar um comentário