sábado, 9 de agosto de 2008

Acuado

Para João da Matilde*

Não. Não houve gritos. Não ouve mais. Apenas a dor imprimiu-se por um breve instante no néon dos olhos desdormidos. A lua era um alfanje inacessível e, se não bastasse, uma cor de estrelas escorria pelas paredes, fazia uma poça no chão e molhava o rosto que despencou, ao ritmo dos relâmpagos, de onde antes estivera.

Fez frio.

O vento atravessou as paredes, portas e corredores sombrios e penetrou até o sangue, nas testemunhas. Alguns dos covardes se abarcaram aos outros e temeram vinganças divinas; outros desembainharam suas armas e, ainda assim, portavam mãos vazias, cheios de espanto e medo, porque este é o meu Filho, que será dado por vós.

O Que Antes Era Corpo, de onde a vida rastejou, impassível, para outro espaço, jazia na poça de estrelas quando um cheiro a jasmins varreu todo o âmbito e se pressentiu o Inexprimível. O morto — e nunca, em toda sua in/existência tivera chance de não sê-lo —, o morto se levantou ao terceiro dia e, apontando o dedo para a culpa de cada um, dedicou-nos suas veias abertas e a serena lucidez que agora, por direito, adquiria.

Se possuísse nome, casa, emprego, profissão, poderia até não ter sido condenado, mas seu destino, de qualquer modo, não deixaria de ser o de acusado: desde sempre, todos os dias, fora Morto, um pouco de cada vez. Por temer a amplidão, tomaram-no como louco e o encerraram em cela escura. Temeu a escuridão e tanto que lhe nasceram estrelas em lugar dos olhos, até que elas também lhe foram proibidas. Perdeu com isso o peso de dois mundos e passou a flutuar. Confundiram-no com nuvens e exigiram que parasse de divagar. Chorara, quando o acorrentaram: “Por favor, tirem essas correntes dos meus pés”.

Não tiraram. Antes, alguns trouxeram uma âncora, que lhe foi imputada com força de lei, de forma que se tornasse raiz e, como tal, para júbilo da nação adormecida, vivesse sua morte lentamente. Até que outros venham tomar seu lugar.

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* João da Matilde foi um pedreiro, preso, sob equivocada acusação de roubo, e assassinado na prisão, pela polícia capixaba, em dezembro de 1981.

2 comentários:

Lili Cheibub disse...

quero o livro novo!
por que o outro blog não existe mais?
quero explicações! rs

beijos!

Miguel Marvilla disse...

Só se vc explicar como se faz para sumir tão bem sumida...

Beijos.