terça-feira, 8 de julho de 2008

Maria, Clara, Lia, Susana...

E eis que, de repente, a eternidade sibila ao nosso redor e nos convida a entrar. Só aí nos convencemos, tintos de terror, de que ainda não somos eternos.

Vejo-me a passear os olhos pelo que me cerca. Pelos cantos da casa encarquilham-se velhas bolhas de sabão, à espera de que vistamos novamente nossas impossíveis peles de crianças — nós, infantes antigos.

Avisto o futuro de onde estou. Tudo tão longe! Esta miopia que me restringe, como atinge meu interior! Meus óculos, sustentados apenas por sua vontade de enxergar, espraiados sobre este rosto rústico e perplexo que dizem me pertencer, aludem a possibilidades remotas, aproximam o mundo e me distanciam, ao mesmo tempo, de mim. E eu aqui, desarmado, nem posso mover-me, enquanto elas estão caindo, prisioneiro intacto de minhas próprias lembranças.


Maria. O corpo colado à vidraça. Chovia ferozmente. Sentia-se presa. De súbito, acusava-me: eu era a chuva e o medo dos trovões, a lâmina e o corte, o abutre.

Tão repentina quanto sempre, ela se decidiu à liberdade: abriu a janela e era bela, muito bela e brilhante, à luz dos relâmpagos, ao exercer seu direito de vôo. Após dar três voltas no vazio, sustentou-se por alguns instantes em alguma barreira de ar e, finalmente, despencou para o abismo. Então, ainda de súbito, lá estava ela, serena e límpida (mas o corpo no jardim, descansando entre as begônias), flutuando no ar, entre pássaros e pensamentos undíferos.

Inesperadamente, em seguida, a porta se abriu. Assustei-me: o sangue que me a/tingia a camisa não me pertencia, mas Clara (Clara mentia sua presença) nem reparou nele. Aproximou-se de meu posto de observação e sorriu, não-me-vendo. Ela era volátil, mas líquida e certa. Permanecia sempre inerente ao espaço que ocupava anteriormente e, assim, conseguia estar em todos os lugares simultaneamente.

Procurava algo. (Não creio que encontrasse nada além de uma ou outra recordação esquecida pelo chão da sala. Aqui, tudo é tão sutil que se torna difícil até saber onde estamos pisando. Opto sempre por me mover o menos possível de onde estou: há o risco demasiado freqüente de esbarrar em algum motivo adormecido ou em algum real sem fantasia que, por acaso, eu possua.) Ela conhecia muito bem isso aqui e estava revirando o local talvez pelo mero prazer de me fazer apreensivo.

Chamei-a e disse-lhe que parasse — eu não suportaria dar de cara com qualquer coisa que estivesse tentando esconder.

A princípio ela não me ouviu (ou fingiu que não) e tive de ser ríspido. Imediatamente, pedi-lhe desculpas, atingi-a mais do que pretendia. Ela se tornou inóspita. Depois, aproximou-se de mim como se fosse pronunciar uma sentença muito importante — algo relacionado com arte dramática ou com borboletas, não importa, todas as suas palavras adquiriam caráter de coisa fundamental —, pois ela aproximou-se de mim e notou, no sangue em minha roupa, sua incapacidade de reconhecê-lo.

Perguntou de quem era. Não respondi. (Eu sei que devemos nos lavar após cada crime cometido, senão para desviarmos de nós as suspeitas, ao menos por higiene, para que estejamos limpos em momentos futuros de amor. Mas não tiver oportunidade de fazê-lo. Clara já havia planejado não me dar mais tempo.) Não responderia por meus atos.

Havia algumas pessoas sentadas sobre botijões na calçada lá embaixo, augurando o caminhão do gás. Cá dentro, algo de grandioso estava por acontecer. Clara insistia em sua curiosidade. Antes que ela, só para me torturar, repetisse mais uma vez sua pergunta e que eu, pela terceira vez, lhe negasse a resposta, indiquei-lhe a janela aberta, única solução que me restava. Ela acercou-se da sacada, sem afastar de mim seu olhar inquisidor. Lá embaixo, começou a chover forte e as pessoas que esperavam o gás já tinham ido embora. O corpo de Maria ainda permanecia nítido entre as begônias. Clara fixou a atenção nele, espantada, e eu a empurrei, sem raiva, mas ela não caiu de todo: a cada espaço que ocupava/desocupava, ia deixando pistas de si.

Quando estatelou-se contra o solo, atônita, olhou-me (eu não seria capaz disso) e ainda encontrou forças para abraçar-se a Maria. Melhor assim. As pessoas pensariam que foi um duplo suicídio por amor, embora pudessem irritar-se por amassarem as flores.

Ah, eu nunca deveria ter confiado nelas, especialmente porque era abril, continuava fazendo calor e elas se fechavam todas, mas não pude resistir. Eram muitas e, se não tivessem querido cobrar as partes de mim que lhes pertenciam, poderiam ter sido mais. Elas se muitificam feito epidemia e me surpreendem a cada esquina, como um adultério que resolvesse saltar de dentro do armário embutido...

Devo estar louco... ouço-as, que se aproximam. Impossível, todas juntas não caberão aqui. É contra a lei de impenetrabilidade da matéria, dois corpos no mesmo espaço.

Eu deveria ter trancado todas as portas que Clara deixou em aberto. Agora é tarde, elas há estão entrando. Posso vê-las, deste meu esconderijo, rubras, rugindo suas revoltas, portando suas armas. Como negar que são belas, umas mais que as outras?

Ainda não sabem da minha presença, mas uma delas, debruçada sobre o parapeito da janela, observa, intrigada, os dois corpos adubando o jardim, sem saber o que pensar. Se ela se virar um pouco mais para a esquerda, serei descoberto. Ela me vê e compreende o que aconteceu. Só há uma saída, antes que grite: empurro-a para baixo rapidamente e me oculto de novo, incólume. Contudo, o barulho do ar se deslocando atrai as outras. São, realmente, muitas e belas. Sabem, agora sim, que estou aqui. É questão de acaso atinarem comigo.

No entanto, antes de começarem a vasculhar o ambiente à minha procura, uma delas — não defino bem se Lia ou Susana — percebe nas demais detalhes de mim que lhes ficaram, indeléveis. Perco o medo. Acho que, por me haverem dividido entre si, elas se irmanarão. Puro engano: surgida de onde a invisibilidade, portada por horror à comunhão, uma faca súbita exerce seu poder de facção.

As descobertas de meus pedaços em seus corpos se multiplicam e elas se matam, cada vez mais ferozes e mais próximas de mim. Respingam-me de sangue. Gritam, mas não se ouvem.

Não. Eu não tentarei nada. E talvez nem seja necessário, não há facas suficientes para tantas que me possuíram.

Agora, há um intervalo em que elas se acalmam um pouco. Posso respirar também. Algumas — e, a cada minuto, são mais que chegam, de maneira que já não cabem todas aqui — começam a atirar os corpos das derrotadas pela janela, a fim de ampliarem o campo da batalha. Depois, e me surpreendo com isso, imaginam que a queda é o caminho para o infinito e se atiram também, tão perto de mim que posso ver suas expressões de júbilo. Elas parecem não acabar mais. No jardim, vão se amontoando fraternalmente no mesmo sangue, na mesma massa. E continuam a saltar, a saltar, a saltar...


Ainda faltam dez minutos para começar a eternidade. Não posso nem sequer me mover daqui, pois então serei carregado pela enxurrada de corpos que despencam, mas tenho que fechar a janela: os vizinhos começam a reclamar do barulho dos cadáveres caindo no jardim.

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