sexta-feira, 11 de julho de 2008

Rua da cidade

O professor do 201 olhou o televisor, calçou os chinelos e guardou na estante o volume III de O capital, que escorregara de suas mãos enquanto cochilava. Mais-valia, capital constante e variável, trabalho, modos de produção, taxas e sobretaxas, misturaram-se, irreconhecíveis, ao sabor de menta da pasta de dentes. Casablanca na Sessão Coruja.

No 202, a atriz de teatro amador, entre gemidos stanislavskianos, atingia seu terceiro orgasmo consecutivo com a diretora da sua última peça. Maria Bethânia, cantando “Mel” cheia de ruídos na velha Sonata, em surdina. Luz negra.

No apartamento 203, a estudante de Psicologia tentava concentrar-se nas teorias de Skinner para a prova do dia seguinte, mas era constantemente interrompida pelos gemidos da atriz. Assim, desistiu e deu corda ao despertador, ordenando-lhe que a acordasse às 6:30, tempo suficiente apenas para um banho e café rápidos. Se o trânsito estivesse bom, chegaria, então, com apenas 15 minutos de atraso à primeira aula.

No 204, um adolescente acordou suado, apanhou a revista Playboy no armário embutido e se masturbou olhando as fotos das mulheres nuas, todas suas.

O casal de namorados, distraído em suas carícias no banco de trás do velho fusca, não percebeu que começou a chover a chuva fina de sempre, quando é setembro. Tinham tempo ainda, agora é outro sábado. Mas que desculpa daria ele à esposa desta vez?

No bar defronte à praça, o sonolento garçom abriu a nona garrafa de cerveja para o bêbado da mesa 5. Depois, como de hábito, ele pagaria a conta com um cheque de assinatura tremida e, sem se importar com os jacarés, dormiria na cadeira, segurando a garrafa até que o bar fechasse.

O guarda-noturno, com seu apito trilongo, passou, avisando que ainda estava vivo, fazendo a ronda.

Cansado de si, o bêbado da mesa 5 tira da bolsa um revólver e se suicida, às 2:51, interrompendo mais um orgasmo da atriz de teatro amador e os sonhos neobehavioristas da estudante de Psicologia. O casal de namorados, absorto em seu amor, não vê o sangue descer as escadas, passar por debaixo do carro e escorrer para um bueiro próximo. O professor, alheio à rua, desliga o televisor. O adolescente ejacula, precoce, nas páginas da revista, sem poder conter sua emoção. O guarda-noturno já vai longe e seu apito, indiferentes a dramas pessoais.

O dono do bar ainda tem de limpar o sangue de sobre a mesa, pensando no prejuízo das nove cervejas que o suicida não pagará desta vez.



[Sorry, mas alguns links só em inglês. Mesmo assim, podem ser úteis aos mais curiosos.]

2 comentários:

Anônimo disse...

Senhor Marvilla, o que o senhor quer passar de mais importante com o seu livro de contos "Os mortos estão no living"?
Mais, eu já li alguns dos contos e o que eu posso citar são imprevisibilidade, presença da morte, e uma espécie de pessimismo como características... me corrija se eu estiver errada. Agradeço sua ajuda, é muito raro podermos contar com o artista para nos explicar a obra.
Futura aluna da Ufes :)

Miguel Marvilla disse...

Futura aluna (de quê?) da Ufes (tomara!), Senhora Bergamin, volte aqui segunda-feira e eu terei deixado umas respostas (se é que elas existem e se a tanto não me faltarem engenho e arte)) para a senhora aqui. Vou publicar os contos durante a semana e responder algumas coisas no fds, a quem perguntar.

:)