sexta-feira, 25 de julho de 2008

Cão




O cão largou-se ao pé da escada, último remanescente de outrora vigorosa matilha. Era o fim da espécie ou, no mínimo, da estirpe. Trazia o pênis ferido, preso ao corpo apenas por uma suja nesga renitente de carne, que hesitava em abandonar o dono, e a boca seca. Tão seca que a língua — lixa-que-lixa — já abrira um buraco do palato. Era tudo quanto lhe restava de corpo, tudo que possuía ainda de cão em si, que ele tentava descansar, diante da impossibilidade de recuperar-se.

Uma barata passou rastejando sobre suas patas dianteiras. De imediato, ele sentiu-se ultrajado ao contato que confirmava seu asco por todo gênero de insetos, mas não conseguiu exteriorizar mais do que um olhar de nojo, incapaz de qualquer outra reação.

Havia no céu uma lua estranha, gélida, pendurada em um vazio avassalador, proprietária de olhos que cingiam o mundo. Tudo restante era apenas escuridão e silêncio. Existiria — sim, existiria — vida em outra parte do universo, e ele não se encontrava muito distante de lá. A lua balançava-se, presa a algum pêndulo invisível, no firmamento, enquanto ele, reles, mero cão, impotente, ruminava restos de pretérito, grotescamente arraigado na paisagem.

Já não tinha muito o que esperar. Em breve, estaria extinto e, com ele, todas as coisas visíveis e invisíveis que povoavam o planeta também desapareceriam. Já não possuía forças nem sequer para lembrar-se de como conseguira chegar até aqui. Talvez tudo resultasse de sua relutância em ser o último, o derradeiro dos cães. Por esse motivo decidira não se entregar: havia resumido seus pertences, abandonado os ossos dos seus ancestrais e ficado à deriva durante longo tempo, para sobreviver à história, para não deixar morrer consigo a memória da sua espécie. Mas falhara desde o princípio.

A lua apossou-se de outra fração do céu. Ele percebeu, vaga e ofuscadamente por entre as lágrimas algo de nuvem boiando no espaço. Um mosquito zombou-lhe da paciência com uma insuportável melodia supersônica. As pulgas e os carrapatos aproveitaram-se de sua debilidade e o atacaram conjuntamente em todos os flancos, como um exército devastador. Logo agora, que estava tão próximo do seu objetivo! Tinha certeza de que haveria outros iguais a ele, já quase podia pressenti-los no quarteirão seguinte, mas estava tão fraco que não conseguia nem abanar o rabo e espantar as moscas.

Amanhecia. A lua empalideceu rapidamente. O mundo deixou de ser tão assombroso e avassalador. Semimorto, o cão ainda ouviu o barulho dos carros e os murmúrios da gente que ia-vinha, rasgando a pele fina da manhã. Aí que não suportou mais a dor, a solidão, a impotência, e deixou-se ficar, definitivamente.


Uma cadela, vibrando de cio, aproxima-se da escada. Ainda não desbravou a esquina e já fareja o cheiro do macho, tão ansiado. Aperta o passo e depara-se com ele. Feliz, lânguida, lambe-lhe o focinho, livra-o das moscas, acaricia-lhe o rosto, pensa-lhe as feridas, roça seu corpo no dele, procurando despertar-lhe a paixão, e, de súbito, percebe que não obterá resposta. Fim da sua última esperança. Agora, com quem dividirá o futuro que se avizinha? Preocupada com isso, descobre o pequeno pênis dilacerado e acha que tem a solução: termina de extraí-lo do corpo inerte e o introduz em si. Há de levá-lo consigo — um pedaço dele preenchendo seu espaço — até que se refaça a espécie.

6 comentários:

Matheus Marvila disse...

Sr. Miguel

O que se passou a esse cão foi uma metáfora?



Matheus de S. Marvila
Marataízes - ES

Anônimo disse...

Vou tentar direito. Meu pai até já me chama de juiza. Quem me dera, ainda chego lá rs. Ah, sabia que você (já estou usando o você, viu?) é quase meu conterrâneo? Eu nasci em Cachoeiro. Terra quente, como dizem na roça.As férias da minha família sempre foram em Marataizes. Legal, não é?

PS: Ainda não acredito que eu estou conversando com o autor do livro que eu li. Surreal.

Miguel Marvilla disse...

Devolvo a pergunta: Metáfora, Matheus? Mas de quê? Eu prefiro pensar em alegoria (pesquise em algum lugar - no Houaiss, por exemplo - e veja se a definição de alegoria que encontrar é adequada a esse conto).

Lembre-se, porém, de que o leitor é livre para enxergar o que quiser - e puder.

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PS: Mais um pra me chamar de Sr. Miguel. E esse ainda é parente... rs

Miguel Marvilla disse...

Boa sorte, então, Aline B. Tomara que vc seja uma juíza competente e séria, pq é de gente assim que o país precisa, em todas as profissões. Quanto a nascer em Cachoeiro, isso deveria, mas não depõe contra ninguém... rsrs

E, olha, nem eu acredito que estou conversando com o autor do livro... Apareça qd quiser. Estarei aqui até o fim do vestibular. Depois, darei às de vila-diogo...

Anônimo disse...

Miguel,
Primeiramente, eu queria dizer que eu odeio escrever na 'norma culta da língua'..(é muito chato cara!!).
No domingo acabei de ler o seu livro.
Cara...adorei.
O que eu mais gostei foi aquele conto...:"O vampiro segundo a vítima"...muito massa!!
Gostaria muito de ter uma dedicatória sua no meu livro.Será que da??Vamos pensar num geito de você autografar pra mim(se você quiser né?!).
Adorei esse endereço.
Vou falar com você todos os dias.

Thau amigão.

Brenda Braga
Cariacica - ES

Matheus Marvila disse...

Pois então, Sr. Miguel, pesquisei e, realmente, "alegoria" é a definição adequada.

Hehe, tudo indica o parentesco mesmo...

Bom, a mais só tenho a dizer que os textos do blog são BEM interessantes, mas acho que não vão fazer parte do meu vestibular. Pena.

Valeu